A DANÇA É A MINHA FOGUEIRA

Performance sobre a androginia, os ritos de vida e o processo criativo de uma performer da Taanteatro Companhia

Clichetes
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por Carolina Cunha, em São Paulo

Alda durante a gravação de vídeo para compor a performance "Androgyne - sagração do fogo", da Taanteatro Companhia (Foto: Taanteatro)
ALDA DURANTE A GRAVAÇÃO DE VÍDEO PARA COMPOR A PERFORMANCE “ANDROGYNE — SAGRAÇÃO DO FOGO”, DA TAANTEATRO COMPANHIA | TAANTEATRO

N o parque Ibirapuera, em São Paulo, Alda está com o corpo coberto de argila. Duas pessoas com máquinas de barbeiro raspam seus cabelos. Uma a uma, as madeixas caem até ela ficar completamente careca. Depois, baldes de água fria lavam tudo. Ela sente que cabeça, corpo e alma estão integrados como se estivesse em transe.

A cena é parte de seu rito de passagem, técnica de processo criativo da Taanteatro Companhia que propõe que o artista vivencie uma situação-limite, proposta por ele mesmo, sem ensaio ou repetição, com o intuito de realizar uma transformação pessoal. Era sua primeira ação com o grupo.

Atriz, performer e dançarina, Alda Maria Abreu, 29, já participou de diversas montagens da companhia como RIT.U (2010), onde personificou seus monstros, Máquina Hamlet fisted (2011), interpretando Ofélia, e Danças [Im]puras (2012), trabalhando com o elemento fogo. Agora mergulha intensamente no tema da androginia.

-Platão escreve que existiam seres que eram redondos e tinham quatro pernas e duas cabeças. Os dois sexos, andro (masculino) e gyno (feminino), existiam dentro de um ser só e se ligavam pela coluna vertebral. E como eram redondos, conseguiam rolar e quase chegaram ao Monte Olimpo para destronar os deuses. Aí Zeus lança um raio e divide os dois. Eles se tornam homem e mulher. E aí vem de buscar essa outra parte que falta ou a metade da laranja, conta Alda.

O mito grego foi o ponto de partida para ANDROGYNE- sagração do fogo, solo-coreográfico criado pela performer e desdobramento de sua pesquisa de mestrado em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Subjetividade da PUC/SP, que cruza a arte, a filosofia e psicanálise. No entanto, o espetáculo subverte o significado clássico da androginia –unidade e perfeição espiritual — ao convocar a despolarização dos gêneros como manifestação ético-erótica do corpo.

Numa tarde fria de agosto de 2013, Alda acende um cigarro e oferece um chá com biscoitos em seu apartamento, em São Paulo. Agora ela tem os cabelos compridos, abaixo dos ombros. Ao conversar, com um leve sotaque baiano, seus olhos grandes parecem brilhar.

Esparramados pela mesa, exemplares do livro “O erotismo”, de George Bataille, textos de Judith Butler, Nietzsche são leituras que a acompanharam durante todo o processo.

No começo do ano, Alda partiu para Portugal onde começou a criação da primeira parte do espetáculo, no qual buscava um contato com sua ancestralidade. Terceira de três filhos, seu pai veio de Portugal após um ultimato de seu avô aos dois filhos homens: um deveria ser padre, outro militar. “Ninguém quis ser padre, e como castigo, meu pai foi enviado para o Brasil, o que foi libertador para ele”, recorda.

A filha de portugueses conseguiu uma residência artística em Lagos, cidade litorânea e histórica, de onde no século 15, saíram algumas caravelas em direção ao Brasil. Sua morada temporária foi um convento do século 17 que se tornou uma cadeia e hoje abriga ateliês abertos de artistas.

Ela deveria trabalhar a questão da geneologia dentro de sua cela, mas era o mar quem puxava sua atenção. Passava horas na praia vazia, com direito a nadar nua na água, sem preocupação. Havia rochas, falésias e um novo projeto a ser gerado.

- A beleza natural era assustadora. Filmei detalhes das praias e coloquei as imagens em televisores, dentro de uma cela do convento. Queria que elas [as pessoas] estivessem ali, claustrofóbicas, mas com essas janelas de liberdade. E foi muito engraçado. As pessoas não reconheciam as paisagens da cidade onde moravam.

Uma das projeções era a de uma figueira localizada dentro da prisão e que ninguém reparava que existia. Mas sempre esteve lá, seca e sem folhas, escondidinha e confinada, com galhos subindo nas paredes. Alda não só reparou como conversava com ela. No vídeo, a artista convida o público a conhecer a árvore ao vivo e assistir à sua performance, onde coloca a figueira no centro de apresentação. Dias depois, seus colegas em Portugal notaram que folhinhas verdes começaram a brotar de alguns galhos da ilustre.

Alda em cenas da performance "ANDROGYNE - sagração do fogo" (Foto: Taanteatro Companhia)
ALDA EM CENAS DA PERFORMANCE “ANDROGYNE — SAGRAÇÃO DO FOGO” | TAANTEATRO

A coreografia de Androgyne traça fronteiras entre o masculino e feminino. No chão, ela dança o nascimento do gênero, em postura fetal, antes de que o menino tenha que usar a cor azul e a menina rosa ou que garotos joguem futebol e garotas brinquem de Barbie.Vídeos acompanham o espetáculo multimídia. As imagens são o registro de duas performances que aconteceram num sítio, criações livres e improvisadas em meio à natureza.

Na tela da esquerda, um deles mostra Alda nua, descendo um riacho contra a correnteza, as mãos tocando as rochas com cuidado. Seu andar parece o de um cavalo e ela tem uma longa trança que lembra uma crina. A musculatura das costas se contrai com força. Ela está encarnando o seu andro, ou sua energia masculina.

- Meu andro é um ser à procura. Carrega uma insegurança, ele sonda, ronda, sente e de repente dá o bote. É muito louco na minha experiência andrógina, meu andro é altamente frágil em todas as performances. Não tinha pensado nisso, mas produzi isso. Já a minha gyne é essa força e essa base.

Ao terminar a frase, Alda abre as pernas e a virilha o máximo que pode e olha diretamente no olho das jornalistas. “É inevitável a força que gyne tem. Existe um poder muito grande neste movimento”, conclui.

Na tela direita, o vídeo exibe sua energia feminina. De cabelos longos e soltos, a perfomer corre por um bambuzal e inclina-se sob um tronco oco. No dia da gravação dos vídeos a terra estava muito úmida, havia chovido, o lodo salpicava no corpo e tomava conta do lugar. Vento assobiando nas árvores. A interação com o ambiente é visceral, quase alucinatória. É pôr do sol e Alda continua a dançar.

- O que passava pela minha cabeça era alguma coisa de uma perda de limites, a sensação que eu tinha é que estava tudo dançando. A câmera, o sol, o tronco, o musgo, o bambuzal. E aí você sai realmente daquela ideia de que o protagonista daquele momento é o dançarino. Tudo dança. O corpo é apenas uma extensão do mundo. Mas isso você só sente fazendo.

Para o espectador, é preciso ver o invisível. Entender que ela não está representando, é um corpo vivo que se relaciona com o espaço. Maura Baiocchi, fundadora da Taanteatro, utiliza o termo pentamusculatura quando se refere a esse momento coreográfico. Para ela, durante uma apresentação, o performer precisa criar uma tensão e conexão com cinco tipos de musculaturas que integram órgãos internos, pensamentos, memórias, espiritualidade e o espaço ao redor.

- O barato é você dançar essas musculaturas juntas. O desafio é estar o tempo todo conectado no aqui e agora. Esse estado pentamuscular é o que você precisa acionar para estar ali presente e intenso, diz Alda.

A nudez é outro elemento presente em sua dança. Ela é necessária a partir do momento em que o corpo já não cabe mais em seus “contornos cotidianos”.

- Eu tenho um companheiro que toda a vez que eu vou estrear uma performance fala: ‘você vai ficar pelada de novo’?”, ri a artista, que lida com naturalidade com o incômodo das pessoas. — O corpo nu tem uma potência impressionante, você tem a sua pele como figurino. Ela é porosa. Só que a nudez é uma vergonha na sociedade. Mas a performance é um lugar de choque e estar sem roupa vem pra isso como liberdade.

No palco, uma fogueira crepita e traz as novas Inquisições da vida contemporânea — “cura gay” e “volta da ditadura militar” são algumas das bandeiras totalitárias que escandalizaram a artista durante as passeatas de junho no Brasil e que foram inseridas na performance. Se o julgamento do martelo é impiedoso, a resistência pode estar simplesmente num corpo que existe.

É por isso que ela faz uma alusão à heroína francesa Joana D’Arc, que lutou na Guerra dos 100 anos, empreendida entre os séculos 14 e 15 entre França e Inglaterra. Ela se vestia como um homem e foi entregue aos ingleses, passou por um julgamento da Inquisição que a considerou uma bruxa por afirmar que escutava vozes vindas do céu. Morreu queimada numa fogueira.

- Joana coloca uma experiência de sagrado que a Igreja não dá conta. E não dá conta por quê? Porque ela carrega toda uma revolução ali por trás, muito maior, de gênero, de questões sociais. E ela resiste. Mas o relato histórico da Joana D’Arc não me importa. O que é essencial para o meu trabalho é a energia que ela tem, com aquele corpo em chamas. Um corpo que se coloca, que não quer agradar e acatar as normas vigentes, os códigos sociais ou religiosos. Um corpo que resiste. É aquilo ali que eu quero capturar. Que venha o fogo.

Eu me jogo na dança como Joana D’Arc se jogou na fogueira

Alda Abreu

Alda durante a performance "ANDROGYNE - sagração do fogo" (Foto: Taanteatro Companhia)
ALDA EM “ANDROGYNE — SAGRAÇÃO DO FOGO” | TAANTEATRO

Alda nasceu e morou em Salvador (BA) até se mudar para Campinas (SP) onde se formou em artes cênicas pela Unicamp — passou no vestibular com notas altíssimas e depois tomou coragem para avisar aos pais que não estava estudando para fazer medicina, seria uma atriz e que moraria a 1973 quilômetros de distância.

A rigidez das identidades sempre a incomodaram. Na infância e adolescência, ela se dividia entre as aulas de judô e de balé e não entendia porquê diziam para ela que isso era estranho. Ou era uma coisa, ou outra. Mais tarde, na prova prática do vestibular, Alda apostou numa clássica tragédia grega e optou por interpretar a heroína Antígona e o durão rei Creonte, ao mesmo tempo. “Já carregava ali uma vontade fora do convencional”, ri.

Quando saiu da faculdade, aos 23 anos, Alda se deparou com uma crise que a colocou numa linha tênue entre loucura e lucidez. Não conseguia comer e chegou a pesar 40 quilos. A anorexia a levou de volta a Salvador, para perto da família. Queria se curar, mas não conseguia sozinha. Ficou internada dois meses, primeiro num hospital comum e depois numa clínica psiquiátrica.

- Foi aí que eu pirei mesmo. No hospital, me expulsaram. Minha mãe tinha pavor de pensar que tinha uma filha maluca. Na verdade, tinha todo um amor ali para não me colocar dessa forma.

Durante a internação, começou a pintar. Primeiro com maquiagem, depois com restos de comida. Até que começaram a trazer revistas de celebridades para ela rabiscar em todos os cantos. Sua produção era intensa e ela pendurava os desenhos no quarto: vaginas enormes, máscaras de carnaval e rostos pintados em fotos de atores eram alguns dos elementos que formavam uma estranha colagem na parede. “Tinha um monte de pinturas com a cara atriz Giovani Antonelli”, ri ela, que se lembra do dia em que o pai ao ver um desenho de Iemanjá com uma vagina enorme, perguntou: “Filha, o que é essa Iemanjá em cima dessa raquete?”.

Enquanto desenhava, a equipe médica sabia que ela estava bem. “Começaram a entrar na minha viagem.” A pedido de Alda, a nutricionista chegou a realizar um jantar à luz de velas para ela comer um pedaço de bolo.

Alda conta a história entre um trago e outro no cigarro. Enquanto fala, não se esquiva de perguntas e respostas. Hoje ela está com 10 quilos a mais e adora comer. Conseguiu dar a essa experiência um significado de busca e criação, que inspirou a peça solo “Meninas Corram”, apresentada em Salvador, em 2008, e que mostra uma personagem com distúrbios alimentares em conflito com o imaginário feminino contemporâneo repleto de padrões — beleza, sanidade, sexualidade.

- Quando sai da faculdade chutei o pau da barraca e isso foi produzindo em mim um estado de liberdade que a anorexia estava colocando. Era um grito silencioso mesmo. É um roçar a morte com a ponta dos dedos. Porque você quer que a vida aconteça, não quer morrer, mas você precisa vibrar com alguma coisa nova e de repente consegue chegar a algo poderoso. Tem uma linha muito tênue entre a arte e a loucura nessa arte fora do convencional. Tem mesmo a possibilidade de você pirar e não voltar mais.

Reprodução
VASLAV NIJINSKY (1890–1950) E ANTONIN ARTAUD (1896–1948)

O primeiro exemplo que vem a cabeça da performer é o do bailarino russo Vaslav Nijinsky. Chamado de “o Deus da dança”, Nijinsky foi da consagração à loucura. Em 1919, aos 29 anos, devido a um distúrbio mental, precisou abandonar os palcos e passou por inúmeras clínicas psiquiátricas. “O problema é quando você entra nesta loucura de forma negativa”, avalia Alda.

Outro nome que ela lembra é o de Antonin Artaud (1896–1948), que passou anos no manicômio francês de Rodez. No curso de teatro, ela já lia os escritos do precursor da performance e apesar de naquela época não ter entendido nada, sempre acreditou que ele tinha algo importante a lhe dizer.

- Eu acho que minha pesquisa pós-tratamento vem para entender como essa autodestruição esta conectada à autocriação. É morte-vida, não é morte orgânica. Eu posso matar um monte de coisas. Na Taanteatro, durante os ritos de passagem, você realiza uma morte simbólica. Entendi que eu posso matar algo em mim, mas sem morrer. E o trabalho ganha outra dimensão.

A vida de Alda também ganhou outra dimensão quando ela conheceu o trabalho da Taanteatro, ou o teatro coreográfico de tensões, há três anos. O encontro com Maura e Wolfgang, diretores da companhia, mudou radicalmente sua forma de pensar e fazer arte.

Na companhia, teve que olhar para sua própria história e encontrar os buracos dela. Jogar fora movimentos viciados, tradicionais e duros, que aprendeu no balé e nas artes cênicas. Estudar técnicas de respiração, equilíbrio de energia, ler sobre filosofia, mitos de cosmogonia e o butô, uma das mais importantes manifestações da dança japonesa, criada depois da Segunda Guerra Mundial e que Maura pesquisa há anos. Ela estudou com Kazuo Ohno (1906–2010), o nome mais conhecido desta arte. Foi no butô que Alda entendeu que a dança pode ir além da coreografia tradicional, com o intuito de gerar imagens bonitas. Pode expressar a individualidade do dançarino, desvendando suas verdades com gestos sutis e lentos, que dão passagem às mais diversas emoções e tensões do performer.

- Tem uma imagem que eu acho muito incrível. Sabe a galinha, quando você corta o pescoço e ela continua viva? Ela fica viva, ela morre de sangrar. Lá em Portugal, minha avó me ensinou a matar galinha. Um dia ela ficou sem pescoço, mas continuou a andar. Quando penso em butô lembrei disso.É um dança de espasmo. Ela está sendo codificada ali, no momento. Então esses movimentos que são estranhos, que parecem bizarros, é apenas o corpo agindo de uma forma que você não está esperando e não está acostumado a ver.

Hoje Alda enfrenta medos com mais calma. Ganhou a resistência de quem se submeteu a alguns testes e passou neles. Um conflito que a moveu a criar ANDROGYNE foi o de como criar um gênero para ela e não se “submeter ao que as identidades que são colocadas sob mim me dizem”.

- A gente tem a condição de fazer microrrevoluções. A arte pode colocar você para pensar onde você está no seu mundo, na vida e os modos de existir. A partir da experiência corporal, a gente consegue subverter ordens políticas e sociais e aí você começa a criar. Para mim, o estado criativo é uma fogueira. Eu me jogo na dança como Joana D’Arc se jogou na fogueira.

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