A GRAMÁTICA PARTICULAR DE ELIDA TESSLER

Mostra Recortar Copiar Colar, em SP, reúne trabalhos da artista que dialogam com textos de Kafka, Haroldo de Campos e outros.

Clichetes
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por Andréia Martins

A artista plástica gaúcha Elida Tessler não sabia, mas seu nome e sobrenome eram como um aviso sobre o futuro: ela leria muito e faria das palavras matéria-prima de sua produção criativa. Iria caçá-las, recortá-las, reescrevê-las, copiá-las, listá-las e, por que não, usá-las para medir o horizonte, refletir sobre o tempo e preencher um deserto?

É essa relação da artista com a palavra e a literatura que o público de São Paulo pode ver nos 15 trabalhos expostos na mostra Recortar Copiar Colar, na galeria Bolsa de Arte [grátis, até 29 de julho. Rua Mourato Coelho, 790, Vila Madalena]. Cada trabalho tem influência de um livro. Não à toa, a maioria deles leva o nome da obra literária.

ELIDA TESSLER, NA GALERIA BOLSA DE ARTE, COM A OBRA BASEADA NO LIVRO DE HAROLDO DE CAMPOS

“Meu interesse por literatura é antigo. E eu me considero uma pessoa que lê e faço jus ao meu sobrenome que traz o sufixo ‘ler’. Outro dia eu li o preâmbulo de um livro do José Saramago, chamado Todos os Nomes, e ele copiou um trecho bíblico que diz conheces o nome que te deram, não sabes o nome que tens. Me identifiquei”, diz a artista ao lembrar de outra obra, na qual listou 270 palavras cujo sufixo era ‘dor’. “Depois desse trabalho é que eu me dei conta que meu nome tem um sufixo que motiva. É o ler antes de mim.”

O TAMANHO DO HORIZONTE

Você já pensou em medir o tamanho do horizonte? Um dos trabalhos de Elida tem justamente este objetivo. Para isso, a gaúcha recortou todo o livro A arte no horizonte do provável, de Haroldo de Campos, e colou as palavras em um rolo.

“Venho da tradição judaica onde a cultura do livro é muito presente, principalmente a cultura do livro em rolo. Então acho que vem daí querer materializar uma fita métrica com a medida de um horizonte, algo infinito, mas que naquele determinado momento eu queria quantificar, saber um número”, conta ela sobre a obra intitulada Horizonte Provável.

O resultado são 596 metros de um horizonte provável.

NA PAREDE, O ROLO COM A MEDIDA DO HORIZONTE PROVÁVEL

A medida do horizonte não foi a única contribuição deste livro ao trabalho de Elida. Do texto, ela retirou ainda 581 verbos no infinitivo usados pelo autor construir um pensamento do provável. Os verbos foram impressos em pratos de porcelana branca.

O verbo no infinitivo indica uma ação, mas não tem tempo. Sem presente, passado ou futuro estamos no fim ou, é justamente a imprecisão que deixa tudo aberto, como um leque de possibilidades?

CAÇANDO PALAVRAS

Apesar do de carregar o ‘ler’ no sobrenome, não foi logo que Elida se deu conta da importância que as palavras teriam em sua criação. Afinal, palavra está em tudo, o que haveria de ser diferente?

“O quanto a palavra é imagem? O tanto que a arte pode proporcionar do ver. Quando a imagem se faz texto? Essas são perguntas que me interessam e eu dedico tempo a elas”, diz ela ao comentar a união de arte e palavra em seu trabalho.

Parece que sempre foi uma brincadeira de caçar palavras. Em trabalhos anteriores, Elida já os nomeava a partir de frases que lia em livros durantes o processo de criação. Seguiu buscando palavras nos objetos do cotidiano. Ao longo dos anos, ela foi colocando substantivos, verbos, adjetivos ou advérbios em listas, pratos, placas, rolos e outros, gerando uma gramática particular.

“Existe algo aqui que é um passatempo. Eu estou construindo uma gramática”, diz ela, que hoje não parece ter dúvida: “Aqui o livro é autor. Eu sou co-artista”.

UM DESERTO

Quem entra na galeria em São Paulo onde as obras de Elida estão expostas depara-se com 1.018 lupas presas à parede. Dentro, diferentes trechos do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, estão ampliados.

“Estava em um grupo de literatura estudando Os Sertões e eu não tinha o livro. Donaldo Schüller (professor e amigo da gaúcha) me emprestou um de sua biblioteca, uma edição de 1938. Quando fui devolver, eu estava com o livro na mão e parecia que havia areia na minha roupa preta. Então eu disse: ‘Donaldo, este é um livro de areia. Tu tens uma preciosidade em casa’”.

DESERTÕES, ELIDA TESSLER, NA GALERIA BOLSA DE ARTE

No outro dia, o professor presenteou Elida com o livro em uma caixa preta. “E se você olhar, com uma lupa, o livro está cheio de sublinhados, sinais gráficos, marcas de X, mas também tem palavras escritas, é outro texto. São outras palavras, mas palavras que já se fazem imagens, porque quando eu estou lendo, estou vendo as palavras a lápis num papel amarelado e já desgastado pelo tempo. Fui levada a pegar uma lupa para ver melhor”.

São esses trechos cheios de anotações que o visitante poderá observar nas lupas. Para esse “ver melhor”, Elida recorreu a um fotógrafo. As fotos foram feitas com mais de uma lente entre câmera e livro. Por isso as diferentes distâncias.

“A ideia era saber o que eu tinha de visível no invisível do tempo que passou. São 1018 lupas que vieram como um grande deserto, não o deserto de forma literal, mas o espaço de uma grande travessia. Fui folheando o livro e me deparei com um subtítulo ‘Como se faz um deserto’. Guardei essa associação e continuei, até cair em outro subtítulo, ‘Como se extingue um deserto’. Ali eu tinha o nome da obra: Desertões”.

Aqui o livro é autor. Eu sou co-artista

VERMELHO

O processo se repete: a ideia começa no livro. Um amigo sugeriu que Elida lesse Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk. “Essa indicação já é suficiente para que eu leia. O livro não me vem como uma cartilha, como uma sugestão do trabalho diretamente, ele vem como proposição, experiência de leitura”, diz ela.

“Lendo, começo a prestar atenção que muitas citações no livro evocam a cor vermelha: a cor rubi, os lábios vermelhos da mulher, o veludo carmin do casaco, e o romance vai se tornando rubro. É como se eu começasse a ver as coisas vermelhas, mas não tem vermelho. O papel é pólen, amarelinho e a letra é impressa em preto. Mas a cor aparece. Eu li uma, li duas, e nessa segunda eu já estava fazendo o trabalho”.

Ela se refere ao trabalho Meu Nome Também é Vermelho, que traz intervenções feitas por ela no livro do autor turco. “Dediquei tempo para barrar letra a letra por um traço, um gesto caligráfico, e criei minha própria escritura, vamos dizer assim. Tudo que remete ao vermelho no livro não está riscado. É a construção de outro romance”.

DESMANCHE NO TEMPO

A grande mesa que ocupa o centro da galeria Bolsa de Arte está tomada por pecinhas miúdas de uma máquina de datilografar cuidadosamente alinhadas. A máquina pertenceu ao pai de Elida e deu origem a dois trabalhos que estão expostos ali.

“2015. Estou em casa lendo Virginia Wolf, um livro que um amigo há muito tempo havia me recomendado: O Farol. Cheguei no segundo capítulo e parei no título: O Tempo Passa. Lendo o livro, eu olhava para estante cheia de livros e a máquina de escrever ao lado. A máquina estava aqui há tanto tempo, cheia de poeira, e eu me perguntei o que é que me impedia de tocá-la. Eu havia tirado ela da casa do meu pai e deixado na minha casa. Ninguém tocou nela. E é uma máquina que me pertenceu, eu usava quando criança. Adorava copiar poemas nela. Olhei para aquilo parado e decidi: vou tocar nisso”.

A ideia foi desmontar o objeto. No início do trabalho, ela pensou em separar as peças de forma bem organizada para o caso de querer reconstruir a máquina, mas achou estranha a ideia de “desmontar” seu pai e depois “montar de novo”.

Não foi um processo fácil. Ao longo do desmanche, Elida achou que não conseguiria chegar ao fim. “Peguei o livro Carta ao Pai, e entrei num ônibus para a minha casa de praia para ler. Eu já tinha lido o livro, mas tive que voltar àquele pai que não era meu para respirar”, conta ela.

A obra Carta ao Pai, que reúne em uma mesa as 617 peças da máquina desmontada, faz referência ao livro homônimo de Franz Kafka, um texto duro e em tom de desabafo que o escritor tcheco endereçou ao pai, numa espécie de acerto de contas. “Talvez eu tenha conseguido uma espécie de reconciliação com esse pai do Kafka. Pode ser o meu pai também. Acho que cada um dos nossos pais têm um pouco do pai do Kafka. O filho que está sempre buscando um reconhecimento, que nunca vai ser igual ao pai. Acho que cada um de nós estabelece o pai para dirigir uma carta em algum momento. A minha forma foi essa”, diz Elida.

A MESA COM AS MAIS DE 600 PEÇAS DA MÁQUINA DE DATILOGRAFAR
OBRA O TEMPO PASSA

Para o outro trabalho, que levou o nome de O Tempo Passa, a artista usou as hastes da máquina que contém as letras e fez delas ponteiros de relógios.

“Eles foram ajustados na mesma hora na abertura da exposição, mas agora cada um segue seu tempo. Cada haste tem um peso e isso cria uma outra coreografia do tempo. Mas há outra explicação: o relojoeiro torceu umas hastes, sem que eu pedisse, o que alterou esse funcionamento”, conta Elida.

Outra explicação poderia ser: é apenas o tic-tac avisando que cada coisa pode ter o seu próprio tempo.

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