A ILHÉUS DE JORGE AMADO

Turismo literário, uma semana nas praias de uma das principais cidades baianas, na região da Costa do Cacau, na Bahia

Clichetes
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por Adriana Salerno

“E, de repente,o avião desviou de rota para o sul e a cidade apareceu ante os olhos dos viajantes. Agora não voavam mais sobre o mar verde. Primeiro foram os coqueiros e logo depois o morro da Conquista. O piloto inclinava o avião e os passageiros que iam do lado esquerdo podiam ver, como num postal, a cidade de Ilhéus se movimentando. Descia em ruas pobres e ziguezagueantes pelo morro proletário, se estendia rica entre o rio e o mar, em avenidas novas, cortadas na praia, continuava na ilha do Pontal, em casas de jardins alegres, sobia mais uma vez proletária pelo morro do Unhão, casas de zinco e de madeira. Um passageiro contou oito navios no porto, fora os grandes veleiros e as inúmeras pequenas embarcações.”

São Jorge dos Ilhéus, Jorge Amado.

AS COISAS

Quase tudo em Ilhéus é da Gabriela e do Seu Nacib. Temos a drogaria da Gabriela, o quiosque do seu Nacib, o carrinho de lanches Gabriela Cravo e Canela, a loja de roupas populares Gabriela Modas. Os personagens de um dos mais famosos romances brasileiros invadem as ruas do comércio e ocupam o imaginário da gente de Ilhéus, onde quase todos possuem histórias para contar, sobre as fortunas do ciclo do cacau. O bar Vezúvio, original do romance, sempre existiu. Foi criado entre 1919 e 1920, por dois italianos, que escolheram o nome em homenagem ao vulcão do país natal. Fica ao lado da igreja principal, a matriz de São Sebastião. O local era onde os coronéis esperavam suas senhoras e bebiam cachaça.

Porém, todos os personagens do romance foram inventados, modificados, tiveram nomes e profissões trocadas, explica a guia do museu Casa de Jorge Amado, que funciona na antiga casa da família do escritor. A guia considera genial o fato do escritor ter se apropriado de tipos característicos da cidade: o coronel, o turco comerciante, a moça baiana boa de cozinha; e também se apropriado de lugares que de fato existiam para montar uma história muito verossímil.

Máquina usada pelo escritor, exposta no museu Casa de Jorge Amado (Foto: Adriana Salerno)
MÁQUINA USADA PELO ESCRITOR EXPOSTA NO MUSEU CASA JORGE AMADO | ADRIANA SALERNO

“Quem trabalha no Vezúvio não aguenta mais os desavisados que entram e perguntam se alguma Gabriela trabalha lá”, observa a guia do museu. O bar Vezúvio, que entre os proprietários nunca constou Nacib algum, embora seja administrado por uma família turca e famoso por seus quibes, instalou logo na entrada uma estátua de fibra de vidro que reproduz um Jorge Amado em tamanho natural (feita com o mesmo material que fabricam os dinossauros dos parques de diversão). Lá está o romancista, sentado em uma das mesas, com olhar perdido no horizonte, um bloco de anotações à frente, vestindo uma camisa estampada com estilo havaiano.

AS PRAIAS

Clima abafado, mesmo no inverno, quando chove demais e sopram ventos incessantes pela orla. A média mínima de temperatura da cidade baiana é de 25º. A comida com dendê e pimenta temperam quase tudo e frutos do mar estão em quase todas as receitas. Duas turistas do interior de São Paulo e mais um hóspede do mesmo hotel logo avisam: é preciso conhecer Itacaré e Morro de São Paulo. Conversas trocadas à toa, a caminho da praia em Ilhéus mesmo, Olivença, uma das praias do sul, onde a faixa de grama morre na areia e centenas de siris cavam buracos. Em Olivença é possível observar peixes minúsculos na parte rasa da água e os turistas costumam caminhar pela areia, mas apesar da natureza exuberante, a poluição existe.

As duas turistas de Marília, pura simpatia, estavam no mesmo quiosque durante a tarde e enquanto eu entrava no mar, se dispuseram a ficar olhando minhas parcas coisinhas, uma bolsa de pano e uma canga. Sentamos para beber várias cervejas durante o fim de tarde, até fechar o quiosque. É preciso conhecer Itacaré, fica perto, uma hora e meia ou duas de ônibus, diziam. Morro de São Paulo vai ficar para próxima visita, mas ainda dava tempo de amanhecer em uma praia mais preservada, uma vila de surfistas e artesãos. Cheguei lá por volta das dez horas da noite, adormeci durante o trajeto (existe uma linha de ônibus de hora em hora), arranjei uma pousada econômica e segui para um barzinho ao som de reggae, bem movimentado, o Favela. Existem muitos barzinhos e programas caiçaras na praia de Itacaré, mas minha disposição nesta altura já me impedia de me abalar para longe da pousada. É sempre bom lembrar: não coma maionese em lugares quentes.

No dia seguinte, depois de uma noite em claro por causa de comida estragada, segui a passos lentos até a Praia da Concha. Ela é toda delicada. No caminho é possível avistar veleiros e barcos de pesca, barracas com artesanato local em palha, crochê, bambus que fabricam tapetes, luminárias, redes, cestos, esteiras, quadros entalhados em madeira. É uma opção bem mais barata fazer o caminho inverso, se hospedar em Itacaré e conhecer Ilhéus durante o dia, existem campings e pousadas muito dignas, bem mais em conta, nos arredores da Praia da Concha.

Praia de Olivença, em Ilhéus (Foto: Adriana Salerno)
PRAIA DE OLIVENÇA, EM ILHÉUS | ADRIANA SALERNO

A presença da festa de São João e de todos os santos juninos é muito forte no nordeste, não poderia ser diferente na Bahia.

Contei mais de uma dúzia de praças ou pequenas ruas completamente tomadas por bandeiras coloridas em azul, amarelo, e vermelho. Muitas bandeiras, a ponto de formar um teto colorido.

AS CASAS

Existe uma simplicidade bonita nas casas do centro, muitas delas ainda com janela e porta pra rua, assobradadas, construções antigas. Poucos prédios altos recortam a paisagem da cidade, o que é um alívio para olhos acostumados com o horizonte de concreto. Embora as coisas não sejam tão tranquilas assim,, nas vielas mal iluminadas que cortam a beira-mar em direção ao centro, não se pode ignorar as preocupações com assaltos à noite. Pouco movimento, poucos carros, muitas motocicletas.

Luiz, um taxista que costuma ganhar a vida entre a Praça 14 e o Centro, indica como opção de passeio, o Convento Nossa Senhora da Piedade. Enquanto fala, aponta que muitos materiais como os detalhes em ferro das escadas e portas, azulejos e acabamentos de palacetes eram importados da Europa pelos coronéis, na época de ouro do cacau.

A bonança não durou para sempre. “Ilhéus foi a Princesinha do Brasil, uma das cidades mais ricas do país, mas depois da vassoura-de-bruxa perdemos muito dinheiro”, diz enquanto dirige.

Na década 1980, a praga agrícola conhecida como vassoura-de-bruxa devastou plantações inteiras e a antiga Capitania hereditária dos Ilhéus deixou de ser a maior produtora mundial de cacau, perdendo seu mercado para produtores da Índia, fato que nunca se reverteu. Mesmo assim, ainda se produz muito chocolate nestas terras e, durante os primeiros dias, pude conhecer a Feira do Cacau, um pavilhão de exposições com produtos e serviços ligados ao chocolate. Foi um acontecimento que mobilizou a cidade toda.

A MÚSICA

“Boleros do Mar” é um galpão azul claro que fica na rodovia do sul, com desenhos marítimos e letras pintadas à mão na fachada, onde pessoas mais velhas dançam juntinho. Nesse bar, músicas percorrem a noite da tradição romântico-brega, com direito a sertanejo dor-de-cotovelo, baião arrastado e algumas luzes que piscam indecisas escapando pela janela. Seria um ótimo lugar para filmar um documentário. Apesar disso, minha anfitriã em terras baianas considerou mais prudente me apresentar um lugar voltado para parte da elite de Ilhéus, o “Mar Aberto”.

Uma noite de conversas e drinques, as pessoas reclamavam da falta de opções culturais na cidade. O “Mar Aberto” é um bar grande com temática náutica, mesas feitas com barris, um palco para apresentações musicais, muitas luzes de led fixadas no chão e garotas com vestidos curtos e colados. Pelo visto, a moda que impera na elite local é uma moda com inspiração periguete. O ponto alto da noite é quando começa a tocar o arrocha, depois de certo horário. É um tipo de dança para o casal ficar abraçado e rebolando, as mulheres também rebolam sozinhas, se for o caso de não ter um par. Rebolam intensamente. Parecem bonecas de molas. “Se não fosse o arrocha seria outro ritmo” me disse alguém que se sentou à mesa-barril para fazer parte da discussão, “o problema não é existir esse ritmo, o problema é só existir esse ritmo nas festas da cidade”.

Fora o arrocha convencional, o que se escuta durante o dia nos cafés e tapiocarias da velha cidade, fundada em 1534, e até mesmo nos quiosques espalhados pela orla, são outros baianos: Dorival e Nana Caymmi, Caetano em todas as fases, Gil, Baby Consuelo, Gal e João Gilberto. Uma vantagem a mais para os amantes da música brasileira.

ADRIANA SALERNO é jornalista e roteirista. Entre uma taça de vinho e outra, pode escrever algum texto de ficção. Gosta de filmes obscuros. Possui planos de viagens mirabolantes com algumas comparsas. Blog: noitevazia.wordpress.com

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