A MINA DO SKATE

A gaúcha Tielle Haas conta como usa o esporte para incentivar a inclusão social e o empoderamento feminino

Clichetes
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por Beatriz Carrasco, em Florianópolis

Em Montevidéu, no Uruguai, durante gravação do documentário sobre skate De Mãos Dadas (Foto Gustavo Remor/Arquivo Pessoal)
TIELLE HAAS EM MONTEVIDÉU, NO URUGUAI, DURANTE GRAVAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO SOBRE SKATE DE MÃOS DADAS | GUSTAVO REMOR/ARQUIVO PESSOAL

E la não enxerga e não escuta nada ao seu redor, apenas o chiado das rodas. Na descida da ladeira íngreme, a 80 km/h, é apenas ela, o skate e o vento. No início, pensou nas inúmeras coisas que deveria fazer, mas no final, sentou no chão em êxtase, com a mente vazia, sentindo os efeitos da adrenalina que se manifestava em um tremor que tomou conta do corpo inteiro. A sensação é de meditação em movimento, de transe absoluto.

Apesar de ser berço de grandes nomes do skate, como Pedro Barros e a Família Yuppie, a capital catarinense tem nesse esporte uma cena feminina mais diluída. Aos 35 anos, a gaúcha Tielle Haas, da pequena cidade de Cruz Alta, terra de Érico Veríssimo, tem sua história intimamente ligada ao skate: são quase três décadas em que as quatro rodinhas conduzem sua trajetória.

A skatista Tielle Haas (Foto: Beatriz Carrasco)
A SKATISTA TIELLE HAAS | BEATRIZ CARRASCO

Moradora de Floripa há 15 anos, Tielle encontrou (e encontra) na paixão pelo esporte, a força para encarar o preconceito que a acompanha por ser skatista. E mais: levar às novas gerações a ideia de como é possível usar o skate para a inclusão social e o empoderamento das mulheres, em projeto que leva essa cultura a palestras com a garotada de escolas públicas da cidade.

- O skate traz uma força de romper barreiras, porque já é um desafio você fazer um esporte sendo mulher, ainda mais no skate. Então, quando usado para o lado bom, as meninas se destacam, aprendem a impor respeito e limites. Os próprios meninos skatistas têm um respeito imenso pelas mulheres na ladeira. Isso é real e isso é bom -, conta.

BONECA? QUERO UM SKATE

Criada ao lado de um irmão gêmeo e outro mais velho, Tielle sempre preferiu os brinquedos considerados “de menino”. Na rua, ela se divertia mesmo sendo a única menina da turma de onze crianças. O primeiro skate não demorou a chegar, quando completou 6 anos.

- Eu me machucava muito, muito -, diverte-se. Foram inúmeras fraturas, porque naquela época não tinha a questão do equipamento. Era caro, difícil de achar, tudo importado, e eu morava no interior do Rio Grande do Sul, uma cidade maçônica, de agricultores. Ou seja, eu já causava por andar de skate, por ser menina… A gente não tinha essa informação, andávamos com o que tinha.

(Foto: Beatriz Carrasco)
(Foto: Beatriz Carrasco)

Além da longa lista de fraturas, as peripécias daquela fase envolviam ainda incomodar os guardinhas que cuidavam dos poucos lugares de chão liso, como a frente do supermercado da cidade.

- Eles corriam atrás da gente -, ri. Nos anos 1990, a prefeitura fechava a rua nos entornos do estádio municipal para o lazer. Então, começamos a construir rampinhas e fazer manobras. Teve um dia que inventamos de pular por cima de um carro. Eu achei que dava e eu fui (risos), mas não deu (risos). Aí eu caí e quebrei o braço em dois lugares. Meu pai já tinha dito que se eu chegasse quebrada em casa de novo, eu não andaria mais de skate, então no verão eu usei moletom por dois meses para esconder o braço quebrado, sem ir ao médico. Eu tenho o braço torto até hoje por causa dessa fratura, calcificou.

NÃO QUERO SER PRINCESA

O tempo foi passando e os amigos de Tielle começaram a seguir os destinos mais comuns dos jovens da cidade: exército, faculdade distante ou serviço na lavoura. Em meio a esse novo cenário, ela sentia o início das mudanças no corpo e na relação com as amigas: estava sozinha e excluída. Prestes a completar 15 anos, então, decidiu dar uma pausa no skate.

- Foi uma época bem pesada, em que a maioria das meninas queria debutar, e eu não queria. Elas sonhavam em ser princesas, e eu não. Eu queria continuar andando de skate, mas também teve a questão da polícia. Eu comecei a apanhar, todos me confundiam com menino e ainda achavam que todo skatista era drogado. Uma fase de transição, eu me achava feia, sabe? A última bolachinha do pacote -, diz, encolhendo-se com a expressão de quem revive a época. Eu vivia escondida, ninguém me queria. As meninas todas lindas, namorando… E eu não queria saber de nada disso

Em La Paloma, no Uruguai, durante gravação do documentário sobre skate De Mãos Dadas (Foto: Gustavo Remor/Arquivo Pessoal)
EM LA PALOMA, NO URUGUAI, DURANTE GRAVAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO SOBRE SKATE DE MÃOS DADAS | GUSTAVO REMOR/ARQUIVO PESSOAL

O RECOMEÇO

Cruz Alta ficou pequena demais para Tielle. Foi então que ela terminou o ensino médio e logo decidiu seguir em frente. A primeira parada foi na cidade universitária de Frederico Westphalen, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. Logo depois, seguiu para Santo Ângelo, onde começou a cursar Comércio Exterior e voltou a flertar com seu antigo parceiro: o skate.

- Conheci uma menina que morava aqui em Floripa e que me incentivou a mudar para cá. Quando cheguei aqui, comecei a ver que as pessoas andavam de skate, sem preconceito, comecei a ver meninas andando. E por incrível que pareça, não sei como, eu consegui uma transferência para a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde fiz Administração. Tinha um colega que não estava andando de skate e perguntou se eu queria. Aí eu comecei a usar para ir e voltar da faculdade, para trabalhar, no dia a dia mesmo. O skate nunca saiu de mim, sempre esteve ali do lado guardado -, gesticula com carinho.

Até a chegada em Floripa, Tielle estava habituada ao street skate, mas queria algo a mais: velocidade. Foi quando conheceu o downhill, modalidade praticada na descida de ladeiras e que logo se tornaria sua marca registrada. O futuro amor da skatista, aliás, foi apresentado por uma mulher. E enquanto se habituava à nova categoria, também conhecia a cena da nova cidade.

- Foi bem devagar, até porque o skate tem isso, de não chegar chegando, de respeitar. Eu já conhecia o cenário de São Paulo das antigas, sabia que o (Sergio) Yuppie estava aqui, que tinha um pessoal envolvido. A cena do downhill em Floripa é fortíssima. A feminina é mais diluída, mas ainda assim, a categoria dá uma longevidade maior dentro do esporte, por isso existem mulheres que chegam aos 50 anos praticando em alto nível, descendo ladeiras a 80, 90 km/h. É um esporte de todos -, explica, citando com afeição o nome de muitos amigos da cena, profissionais ou amadores.

AMOR(ES) INUSITADO(S)

“O Ricardo foi um presente de Natal”. É assim que Tielle continua a história sobre as aventuras da nova vida longe de casa. A delicadeza com que fala sobre o marido surge em muitos momentos de nossa conversa, deixando nítida a importância dessa parceria em todas as outras atividades que desenvolve. Ah, e desse amor nasceu Maria Luiza, a Malu, menina esperta que, aos 6 anos de idade, já mostra suas habilidades no skate — e também no surfe, esporte praticado pelo pai.

- Eu casei pouco tempo depois que cheguei, mas fui muito infeliz nesse casamento. E, na véspera de Natal de 2006, eu, digamos, levei um pé na bunda… -, diz com uma breve pausa. Eu levei um pé na bunda mesmo -, completa na sequência, deixando a timidez de lado.

- Estava com a autoestima muito baixa, a minha família na época não entendeu, porque ele era uma pessoa que se vendia muito bem, que tinha lábia. Na véspera de Natal, eu estava saindo de casa com uma mochila, sem saber para onde ir, e um amigo me convidou para passar o Natal com ele na casa de outro amigo. Eu disse ‘cara, eu tô mal, olha pra mim’. E ele disse ‘não, vamos lá, eu vou te levantar a moral’. Aí eu cheguei e era a casa do Ricardo. E quando ele abriu, eu senti uma coisa…

Malu segue os passos da mãe e do pai no skate e no surfe
MALU SEGUE OS PASSOS DA MÃE E DO PAI NO SKATE E NO SURFE | ARQUIVO PESSOAL

Desde o encontro, os dois não se separaram mais. E um ano e meio depois, chegou a Malu. Durante a gravidez, o skate ficou guardado para depois Tielle se dedicar com afinco buscando patrocínios, organizando eventos e também escrevendo para revistas especializadas.

- Eu tinha facilidade para andar de skate e algumas marcas estavam querendo apostar em mulheres. Mas não nesse padrão da skatista que seja ‘a melhor’, porque nem sempre você sendo o melhor no que você faz, em manobras, você leva a melhor imagem do skate. E eu sempre me propus a ter uma imagem voltada para o social, a chamar as meninas para o esporte, mesmo quando elas acham que não têm talento. Os skatistas em si não têm preconceito, você pode chegar iniciante e andar com o melhor do mundo, como é o caso do Yuppie. Na mesma ladeira, sem preconceito. Em outros esportes isso já é mais complicado. O skate é mais democrático, você anda em qualquer lugar. Mesmo que não tenha uma ladeira enorme, tem o asfalto, a calçada, você pode andar na chuva, no seco, aceita qualquer idade, qualquer pessoa.

SKATE COMO INCLUSÃO SOCIAL

Com o skate na mão e já habituada à nova vida, Tielle decidiu transcender a adrenalina das ladeiras para iniciar uma nova etapa: levar o esporte a jovens de comunidades carentes da Grande Florianópolis como forma de apresentar outras realidades possíveis em meio aos recursos escassos.

- Você precisa de disciplina para ser um skatista, para aprender uma manobra. Às vezes, você fica meses tentando a mesma manobra, até acertar. Isso também faz desenvolver a paciência. Uma criança que anda de skate é uma criança mais paciente, mais calma, tem mais persistência. Além de trazer a ideia da união, do respeito pelo colega.

Uma das iniciativas que Tielle participa é o projeto Fênix, que estimula a volta dos jovens à escola por meio dos esportes radicais. Neste ano, o idealizador da ação, Claudio de Souza — conhecido como O Sonhador -, foi premiado no 13º Prêmio Instituto Guga Kuerten, que destaca pessoas e instituições desenvolvedoras de iniciativas sociais para educação de crianças e pessoas com deficiência em Santa Catarina. Ele ganhou o prêmio por propor a inclusão do skate no CEDEP (Centro de Educação Popular), instituição localizada na comunidade do Monte Cristo.

Tielle é voluntária no projeto Fênix, que estimula a volta de jovens à escola por meio dos esportes radicais (Foto: Tielle Haas/Arquivo Pessoal)
TIELLE É VOLUNTÁRIA NO PROJETO FÊNIX, QUE ESTIMULA A VOLTA DE JOVENS À ESCOLA POR MEIO DOS ESPORTES RADICAIS | ARQUIVO PESSOAL

- Ele é um cara fantástico, que luta muito pela causa de empoderar as crianças do morro, tirá-las do crime. Na palestra que eu dou como convidada voluntária, senta geral numa roda e eu conto a minha história, levo as revistas, mostrando como saí de uma cidade do interior e estou aí. Já conheci o Brasil, já fui para fora, tudo com o skate. Nunca ganhei dinheiro (risos), nunca consegui ter um retorno financeiro, mas é o que eu amo e me abriu muitas portas.

A questão da desigualdade social, aliás, é um ponto que Tielle aborda com atenção especial. Isso porque a imagem de Florianópolis é geralmente associada às belas paisagens — propaganda que, por sinal, é vendida com afinco pelos governos estadual, municipal e grandes empresas -, enquanto a maior parte da população é excluída e ignorada.

- Aqui não temos quase nenhuma inclusão no esporte. Sendo um litoral imenso com viabilidade para o surfe, skate, asa-delta, voo livre, canoagem, stand up paddle haveria condições de voltar o esporte para o social. O próprio centro da cidade é virado de costas para o mar, o morro não desce para a praia, eles não vêm para a Beira-Mar, não visitam. E quando saem, ainda enfrentam o preconceito. Vejo o skate como um esporte que você pode inserir em uma escola de primário, por exemplo. Porque vai ajudar na função motora, no sentido de as crianças terem a consciência do emprestar um brinquedo, aprendem a observar o amigo, a ter mais contato direto, porque você não pode praticar sozinha. Se tiver uma queda, quem vai te socorrer? O skate une muito as pessoas. Eu gostaria que aqui em Floripa tivesse não só o skate, mas algum esporte radical na grade curricular. Somos um celeiro de campeões aqui. É possível mudar essa estrutura. Dar mais ênfase para o esporte, integrar mais as comunidades, tirar os carros da rua.

Tielle destaca a viabilidade de Floripa para usar os esportes radicais como inclusão social (Foto: Gustavo Remor/Arquivo Pessoal)
TIELLE DESTACA A VIABILIDADE DE FLORIPA PARA USAR OS ESPORTES RADICAIS COMO INCLUSÃO SOCIAL | GUSTAVO REMOR/ARQUIVO PESSOAL

SUBMISSÃO MANDOU UM BEIJO

Nos encontros nas escolas públicas, Tielle costuma atrair, em especial, a atenção das meninas, oportunidade que usa para incentivar o empoderamento feminino.

- Elas não se abrem muito na frente de todo mundo, mas sempre quando termina a palestra, eu fico com elas. Elas contam que estão namorando alguém do tráfico, que a amiga de 12, 13 anos, está grávida, que apanham em casa, que são forçadas a trabalhar. Sem falar nessa coisa da beleza, que força as meninas brasileiras a terem um estereótipo europeu, de ser loira, alta e magra. Aí você sobe no morro e vê que 90% delas são negras, mestiças. Elas ficam perdidas. Então, o que eu passo para as meninas é que não importa se ela é gordinha, baixinha, magrinha… Ela pode entrar no skate. As meninas aprendem a ser mais fortes e mais tranquilas ao ver essa realidade mais de perto, de não se sentir submissa. Ela sabe que tem uma dificuldade, mas que vai conseguir enfrentar. Porque o skate traz isso: caiu? Levanta. A vida é assim.

Tielle e Malu nos rolês de cada dia pelas ruas da cidade (Foto: Beatriz Carrasco)
TIELLE E MALU NOS ROLÊS DE CADA DIA PELAS RUAS DA CIDADE | BEATRIZ CARRASCO

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