A VIDA EM BRANCO E BRANCO

A história de Andreza Cavalli é a história de muitos: os albinos

Clichetes
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por Fabiana Nanô

Andressa em foto para  ensaio
ANDREZA EM FOTO PARA O ENSAIO ACHROMIA | ÍTALO GASPAR

E stou parada em frente ao café quando a vejo aparecer na esquina. Eu sabia que, daquela distância, ela não me veria, então a espero aproximar-se de mim para acenar. Ela me reconhece e nos abraçamos. Entramos. Como o café é em um espaço aberto, ela permanece com o chapéu e os óculos escuros, mas tira o casaco e começa a contar a sua história com uma blusa verde escura que contrasta com o tom de pele, clarinha, clarinha.

A história dela é a história de muitos. Mas esses muitos não são quantificáveis, pois nem o Censo, que acontece todo ano, abre uma brecha para contabilizá-los. Por isso, Andreza Cavalli, 33 anos, inicia a conversa dizendo que seu grande sonho é realizar um documentário, de caráter educativo, sobre o albinismo no Brasil. Ela quer que o filme chegue aos rincões mais profundos do país, pois fica inquieta quando sabe de alguma família pobre cujo filho, albino, não é reconhecido como tal. “Eles acham que a criança é branquinha e vai escurecer.”

Há motivos para tanta preocupação, e um deles diz respeito ao fato de que albinos correm mais risco de desenvolver câncer do que pessoas morenas, por não contarem com o “escudo” da pele: a melanina. Andreza explica que a ausência ou mau funcionamento desta pode resultar em dois tipos de albinismo: o tipo 1, que é o dela, no qual a tirosina — enzima que produz melanina — não funciona, portanto há total despigmentação de pele, olhos e cabelos; e o tipo 2, em que a tirosina produz melanina, mas falha na distribuição, então o cabelo que era para ser preto fica loiro, o olho que era para ser castanho fica verde, e a pele fica levemente mais rosada do que a do albino de tipo 1. Esta característica do tipo 2 pode confundir muitos que se creem apenas loiros e descobrem-se albinos tarde, às vezes depois dos 15 anos. Descobrem-se albinos, porque, tanto para eles quanto para os do tipo 1, uma forte exposição ao sol sem proteção tem a mesma consequência: queimaduras de segundo grau, já que a radiação entra direto na pele.

“Enquanto uma pessoa que não usa protetor solar está propensa a ter câncer de pele a partir dos 40 anos, nós estamos a partir dos 20 anos. E muitos albinos morrem por causa do câncer nessa faixa etária”, afirma Andreza. Não é raro albinos apresentarem lesões na pele até mesmo antes dos 20 anos, sobretudo em famílias mais pobres. Daí sua inquietação. Se em São Paulo, onde mora, já existe tanta desinformação, como será em outros estados? Como será na Bahia, onde há tantos albinos?

Segundo Andreza, a Bahia é o único estado brasileiro onde há uma associação formal de albinos, devido à grande incidência de pessoas com esta condição genética por lá. “Uma pesquisa americana mostrou que o albinismo é mais frequente entre os afrodescendentes do que em pessoas com ascendência europeia, por exemplo”, diz. Talvez esteja aí a explicação para a Bahia ter tantos albinos e contar com a Apalba (Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia), que vem lutando por políticas públicas para esta população no estado. Lá, protetores solares são distribuídos gratuitamente para famílias com pessoas albinas, mas este serviço ocorre apenas em Salvador. E quem mora no interior do estado?

Para dificultar, protetores solares são considerados cosméticos para a Anvisa. Este fato, aliado à ausência de pesquisas sobre o número de albinos no Brasil, faz com que políticas públicas para esta população sejam inexistentes. Os albinos passam a ser um povo invisível.

MUITO ALÉM DA PELE

Por iniciativa própria, dois médicos da Santa Casa de São Paulo resolveram montar um programa, o Pró-Albino, dentro do hospital. Além de prestar atendimento, o dermatologista Marcus Maia e o oftalmologista Ronaldo Sano conseguiram aprovação do Comitê de Ética da instituição para realizar um mapeamento genético de albinos, com a finalidade de identificar os tipos de albinismo e montar um banco de dados para futuras pesquisas. Andreza foi uma das doadoras de sangue e é grande entusiasta do projeto. “Eu brinco que sou caçadora de albinos, porque estou sempre andando na rua, e, se encontro alguém com albinismo, paro, pergunto se tem acompanhamento médico e falo sobre o projeto.”

Ela conta que, além dos cuidados com a pele, também teve de se adaptar à fotofobia e à baixa visão. “A percepção visual que você tem a uma distância de 200 metros, eu tenho a 20 metros”, diz. Por isso, ela anda com um monóculo na bolsa, mas confessa que nem sempre é prático usá-lo; para ler um livro, só se for com letras muito grandes; óculos escuros são um item indispensável para sair na rua.

Curiosamente, a acuidade visual de 10% foi descoberta só aos 25 anos, quando uma dermatologista a precaveu. “Ela me disse que eu tinha direitos por ter baixa visão.” Depois desse episódio, Andreza passou a usufruir da gratuidade no transporte público — condição que se estende ao acompanhante — e recebeu uma prova especial quando prestou o vestibular da USP pela segunda vez, em 2007. “Antes de realizar a prova, eu fui à sede da Fuvest e eles me mostraram vários tamanhos de letras, me deixaram escolher qual era a mais adequada à minha visão.” A prova para pessoas com condições especiais também dura mais tempo.

Andreza se pergunta quantos adolescentes albinos conhecem esses privilégios? E quantas crianças albinas sabem que não conseguem enxergar a lousa direito por terem baixa visão, uma característica de suas condições genéticas? Ela mesma lembra que sentia vergonha na sala de aula, pois a professora a colocava em cima do tablado. “Eu já era diferente, e tinha que ficar na frente de todo mundo… Mas ouvi relatos de professores que não estão nem aí, pedem para os alunos sentarem no chão, na frente da lousa, se não conseguem enxergar. Muitos abandonam a escola.”

Chega a adolescência, a época dos primeiros amores, e os preconceitos não diminuem. Quando Andreza ia com as amigas a um bar, sentia que elas tinham a preferência dos garotos. Até hoje, ao andar pelas ruas de São Paulo, em bairros nobres, ouve comentários depreciativos de alguns homens sobre a sua condição e identidade.

O tempo passa, e os obstáculos continuam surgindo. Andreza, que era engenheira eletricista, foi demitida de seu trabalho, porque “não sabia dirigir”. Ela ainda conhece outras histórias, em que a pessoa albina recebe o clássico “a vaga já foi preenchida”. Os exemplos se multiplicam, mas, hoje, parecem não afetar o bom humor dela, que resolveu dar uma guinada na vida e fazer o curso de Educação Física. “Eu ganho muito menos, mas é a minha felicidade que está em jogo”, diz, com uma simpatia genuína. Ela se direcionou à área de licenciatura e revela ter vontade de trabalhar em escolas, com crianças albinas, para desenvolver suas capacidades motoras e conscientizá-las de suas condições.

A RUA É O MUNDO

Desde os 13 anos, Andreza anda sozinha na rua. Ela não teve impedimento por parte dos pais, talvez por ter mais dois irmãos albinos — André, de 34 anos, e Marcos, de 30 anos. A única irmã não albina é Mariana, de 25 anos. “Nós dizemos que ela é a diferente”, brinca. A realidade de Andreza, porém, não condiz com a de outros albinos. “Muitos têm medo de sair de casa sozinhos, só saem acompanhados. Isso faz com que nós deixemos de conhecê-los, dificulta a formação de uma associação e a contagem de albinos no país”, afirma. “Muitos também não viajam”, continua Andreza, para em seguida revelar que não é o caso dela.

Em intercâmbio pela Faculdade de Educação Física da USP, Andreza foi para Portugal em 2011, onde morou durante sete meses. Em julho de 2012, passou dez dias no Japão, para participar de um curso de verão. Estas experiências não só a fizeram ganhar confiança e autoestima, mas contribuíram para a descoberta de albinos mundo afora.

Pelo Brasil, Andreza caminhou um bocado. Ela foi ao Rio de Janeiro no começo do ano para ajudar a criar uma associação, ainda informal, de albinos e familiares, que conta com reuniões mensais nas quais participam profissionais de várias áreas. Em setembro do ano passado, foi a Salvador participar de um simpósio de pessoas com albinismo — o encontro era estadual, mas os organizadores locais conseguiram patrocínio para trazer pessoas de outros estados do Brasil. “Estava bem cheio”, conta ela.

Antes de ir a Salvador, Andreza já tinha uma forte ligação com a cidade. Em 2009, ela conheceu, durante suas andanças pelas ruas e pelas redes sociais, o baiano Anderson dos Santos e Santos, ativista da causa albina. À época, Anderson precisava de ajuda, as lesões na pele indicavam um estágio avançado do câncer. “Eu consegui trazê-lo para São Paulo, ele ficou hospedado na minha casa e fomos até o Hospital das Clínicas. Cheguei lá, sem marcar nenhuma consulta, e fui perguntando onde era o setor de dermatologia. Tudo no boca a boca. Consegui fazer com que ele fosse atendido pelo médico.” Era 31 de março de 2009. A partir de então, Anderson começou a vir com frequência a São Paulo. Mas as lesões foram mais fortes. A 31 de março de 2011, ele faleceu, deixando uma carta para divulgação. Uma carta de despedida. Uma denúncia do descaso do governo para com esta população.

Um dos irmãos de Andreza também escreveu uma carta, que foi enviada ao Ministério da Saúde. Era a respeito da importância da distribuição de filtros solares para os albinos. Como resposta, o órgão afirmou que protetor é cosmético e, além disso, para haver distribuição, é preciso saber a quantidade de pessoas que precisariam do produto. “Mal e porcamente, eles disseram que, se o sol faz mal, ande coberto. É meio chocante. É muito evidente que, se você não usa protetor, você queima a pele e está sujeito a ter câncer”, diz Andreza.

Para ela, os obstáculos vêm não apenas do governo, mas dos profissionais da saúde e da educação. Ela, que paga por um plano de saúde privado, confessa ter muita dificuldade de encontrar um dermatologista que entenda de albinismo. “Minimamente um dermatologista tem que saber orientar uma pessoa a usar protetor solar, seja moreno, seja albino. Isso é o básico. E quando eu ouço que a maioria dos albinos aprendeu a usar o protetor lendo rótulo, para mim isso é muito sério. Porque é o beabá. Mas essa orientação falha.”

SINGULARIDADES

A condição de albino pode ser uma faca de dois gumes. Na África, dois países, a Tanzânia e o Burundi, difundem crenças que em nada ajudam à compreensão do albinismo. Lá, circulam ideias de que, se você bebe o sangue de um albino, se usa o braço ou a perna de um albino em rituais, você pode ser recompensado com inúmeros tipos de fortuna. “Eles sequestram albinos para estes rituais. Alguns pais de família vendem seus filhos albinos para bruxaria. Mulheres albinas aparecem grávidas e aidéticas após serem violentadas, devido à crença de que homens podem se curar da Aids se se relacionarem com uma albina”, conta Andreza. “É muita ignorância.”

À sua maneira, ela foi encontrando vias para dar visibilidade à causa albina. Na internet, é grande ativista, criando grupos em redes sociais, participando de outros, seguindo blogs e postando vídeos no YouTube. Além disso, há pelo menos dez anos, Andreza realiza ensaios fotográficos. O mais conhecido deles é de autoria do mineiro Gustavo Lacerda, que iniciou a série Albinos em 2009 (veja no site oficial).

Beleza, delicadeza, suavidade são as três linhas deste trabalho. São também três traços da personalidade de Andreza, incansável na tarefa de assumir sua identidade e ajudar outros a descobrirem suas singularidades.

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