DA JANELA, DO ASFALTO
O que pode acontecer quando dois jovens franceses viajam de carona até o México? Confira a história real destes caroneiros
por Ana Campos
3.364,4 km separam Nova York da Cidade do México. Quase seis vezes a distância entre as francesas Tolouse e Paris. Número que passou batido por Nicolas ao olhar seu mapa da América do tamanho de um guardanapo. Com ele em mãos e a namorada ao lado, o garoto de 19 anos parte para a viagem que marca o começo da mudança de sua vida.
Destino: Cidade do México. Junho, 1995
Em um ponto de parada de caminhão, na Filadélfia (EUA), onde motoristas costumam descansar, comer e tomar banho, os franceses de Tolouse, Nicolas Brien, 19 anos, e Emanuelle Godoy, 16, carregam um cartão retangular com o escrito “México”. Sob as costas, mochilas de 20 kg. Na cabeça, um equivocado senso de praticidade.
Nicolas tinha um olhar inocente. Os pelos da barba, ainda ralos, cresciam desordenadamente. O cabelo na altura dos ombros contornava o rosto fino, de boca e sobrancelhas delicadas. Na estrada, não intimidaria ninguém.
A face arredondada de Emanuelle contrapunha o corpo magro, mas diz mais sobre a sua personalidade. A ponta de seu nariz, levemente rechonchuda e arrebitada, combinava com seu ar infantil e temperamento explosivo.
–Garotos, estou indo em direção a Nashville. Vocês querem uma carona? –aborda um sujeito de barba volumosa e chapéu.
–Náá –recusa Nicolas. Queremos ir para México.
–Mas nenhum caminhão vai até lá.
–E cadê os caminhoneiros do México?
–Eles não entram mais aqui! Agora, toda a mercadoria para na fronteira!
A nova informação carecia de credibilidade para Nicolas, mas dizia respeito à inclusão do país ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta, em 1994, que impediu o acesso irrestrito de caminhões mexicanos ao território norte-americano. Desconfiado, o francês recusa. A esperança, no entanto, se desgasta após uma hora e meia de investidas mal-sucedidas. O motorista, que continua por lá, está prestes a partir e sugere novamente:
–Olha, estou oferecendo uma boa carona, de 1.000 km. Vocês têm certeza de que não querem ir?
Cansados de esperar pelo milagre mexicano, o casal aceita e entra no caminhão enorme e velho do barbudo Randy, que Nicolas viria a dirigir horas mais tarde. Na parte de trás da boleia, pilhas incontáveis de revistas pornográficas. Ao fecharem as portas, a ironia dá seus primeiros sinais, Higway to Hell, do AC/DC, vira a trilha sonora do filme protagonizado por Nicolas. Com o volume no máximo, a aventura começa com os pneus relinchando após um contorno brusco em uma rotatória que os leva direto à rodovia. “Agora sim. Agora estou in the United States of America”.
Outros tempos
A sugestão do modus operandi da viagem veio de uma voz experiente, hippie e brasileira. Com naturalidade, Suely, sogra de Nicolas, diria: “Por que vocês não vão de carona de Tolouse até Paris, de avião até Nova York e de carona até o México?”.
Suely, caroneira veterana dos anos 1970, tomava como base um contexto diferente. Na época, as caronas eram mais recorrentes porque os carros não eram tão acessíveis. Até 1970, o número de veículos em todo o mundo chegava a 250 milhões. Em 20 anos, a produção mundial já superava o dobro. “Antigamente, no interior, só tinha um ônibus por dia que vinha à capital”, lembra o inspetor da Polícia Rodoviária Federal de São Paulo, Márcio José Pontes, de 41 anos.
Ainda hoje, na Europa, viajantes pegam caronas e atravessam fronteiras entre países de carro em questão de poucas horas. Já as nações com dimensões continentais estão em desvantagem. Seus longos vácuos espaciais entre uma cidade e outra dão abertura a ideias amorais. Mas isso Nicolas ainda não sabia.
Arriba, México!
–Estou cansado. Você tem habilitação? –pergunta o caminhoneiro Randy.
–Tenho –refere-se Nicolas à carta de carro tirada há três meses.
– Então senta aqui.
O garoto é apresentado às 18 marchas que um caminhão baú sider, de lona e grande porte, pode ter e aprende o macete básico que lhe permitiria seguir reto na rodovia, com apreensão, mas sem maiores problemas:
– Você tem que ficar de olho nas ultrapassagens. Quando um caminhão te passar, você dá farol para ele saber que já pode voltar.
Após meia hora, Randy reassume o volante, e o trio só para em Nashville, Tennessee, onde Nicolas e Emanuelle se despedem da primeira carona americana. Com um Motorista Bigodudo, vão até Little Rock, Arkansas. Em um posto de beira de estrada, ficam à espera da próxima boa alma. Quem chega, no entanto, é um policial, perguntando a Nicolas a idade da menina. O diálogo é curto, mas o suficiente para que o oficial descobrisse que se tratavam de menores estrangeiros.
– Eu poderia prender vocês… Mas só quero que saiam daqui.
Às duas horas da manhã, eles seguem em frente, sempre em frente, por dois quilômetros até o próximo ponto. Esgotado, Nicolas nem percebe seus olhos fechando, até dormir. E quando acorda está deitado em uma cama, dentro de um caminhão.
–Nossa, o que aconteceu?’
–Você estava apagado. Ele disse que era perigoso a gente ficar lá e te carregou até aqui.
O ele a quem Emanuelle se referia era o motorista que o casal passaria a chamar de Papai, graças à simpatia e ao cuidado singular. Emanuelle não falava inglês, mas Papai se virava no francês. Com ele, foram até Dallas, Texas, último Estado antes do México.
–Vocês dois são loucos. Aqui é deserto. Se alguém matar vocês, ninguém vai saber. Vou arrumar uma pessoa pra levá-los.
Depois de muita insistência, o caminhoneiro consegue convencer um casal a levar os jovens até a fronteira entre os dois países.
E eles levam o pedido ao pé da letra:
–Ei, ei, acordem!
Ao encostar na divisa entre Laredo, Texas, e Novo Laredo, Tamaulipas, os americanos pegam as mochilas de Nicolas e Emanuelle e jogam-nas para fora:
– Caiam fora, get out, get out!
O relógio marca uma da manhã quando são expulsos e, em poucos segundos, perdem o veículo de vista.
Cruzam a pé uma das três pontes sobre o Rio Grande e conseguem um ônibus até a rodoviária. No trajeto rumo à capital, Nicolas observa pela janela a paisagem desértica do norte mexicano, quando avista um cavalo morto e um caminhão destruído. Homens armados com lenços sobre a boca remexem os destroços. “Caramba, o que é isso!? Isso é México. Arriba, arriba!”
No banco esquerdo
Juventil de Jesus, de “quatro e meia” de idade, conta nos dedos quantas caronas já deu nos quase dois anos que percorre o trajeto Caxias do Sul, RS — São Paulo, SP, com seu caminhão baú sider.
Foram quatro. Sempre durante o dia. “E todos homens”, ressalta, evidenciando a inversão de papéis de vítima e vilão. Se as mulheres temem ser assediadas, os caminhoneiros têm também os seus receios.
“Posto é posto, e mulher que tá ali quer caçar o motorista. Ela pode falar ‘vou parar em tal lugar’ e, nesse lugar, tem uns caras esperando. E aí cê não sabe o que vai acontecer”, justifica Juventil, com seu sotaque gaúcho de Iraí e a famigerada camisa branca semiaberta até a barriga.
O caminhoneiro Josenberg de Sousa, de Vitória da Bahia, sabe dos riscos e os ignora com a displicência juvenil dos seus 22 anos. Dos caroneiros que ajudou, dois eram homens. A mulher não era prostituta, mas ele acredita que a maioria das que pede é. “Mulher rouba a gente. Dá aqueles ‘boa noite, Cinderela’, e, no outro dia, o caminhão tá pelado”, conta, enquanto mexe em dois smartphones.
Josenberg não sabe soletrar o nome, mas dirige desde os 14. O trajeto de caminhão de Vitória da Bahia, BA — São Paulo, SP ele pega há cinco meses. Faz todo o caminho em uma, duas noites. “Aí tem que tomar uns azuizinhos, né”, refere-se ao rebite, a anfetamina de cor azul usada por motoristas que querem se manter acordados para cumprir as metas de carga e descarga.
Um herói, entre aspas
Quando Joel Randall os abordou em Little Rock para oferecer carona, mostrando documentos e boas intenções através dos óculos de grau, Nicolas não teve um bom pressentimento, mas confiou na opinião de Emanuelle.
Eles voltavam à estrada depois de 45 dias na Cidade do México e encontravam um sul americano fervendo, com o termômetro marcando 50 graus. Como todo retorno, a viagem estava mais cansativa e arrastada e duraria uma semana.
No caminhão de Randall, convivem com um desconfortável silêncio até a primeira parada, já à noite. Em vez dos iluminados postos de conveniência, o motorista magro, de olhos azuis frios e cabelo castanho bem cortado, estaciona em um pequeno bar, escondido entre árvores. Avisa que vai dormir na cabine traseira, deixando os assentos para Nicolas e Emanuelle.
Há três dias sem pegar no sono, o garoto não demora a adormecer. Até que desperta com cutucadas de Emanuelle.
– Ele me ofereceu 500 dólares para dormir com ele.
Os dois saem do caminhão, discutem e concluem que não há nada a fazer àquela hora, a não ser esperar acordados para descer no próximo ponto viável. Entre o papel de herói inconsequente e o de ponderado omisso, o francês escolheu o segundo. “Na hora, senti alívio e pensei “Ele não a estuprou. Ele não nos matou. Ainda existe uma esperança’.”
Na manhã seguinte, o caminhão ganha o peso extra do silêncio daqueles que sabem que sabem demais. O trio roda assim o dia todo, até a segunda parada, dessa vez em um ponto convencional. Emanuelle deixa a cabine e sai para andar entre os outros veículos estacionados, ainda mais revoltada ao perceber que Nicolas não está disposto a procurar uma nova carona.
Quando Randall volta ao caminhão, os dois o acompanham, com a paz já selada. Poucos metros adiante, porém, o motorista para novamente:
–Estavam dizendo no posto que tinha uma putinha andando por aí e pela descrição parece a sua garota. Vocês tão usando o meu caminhão como bordel, é isso? Filhos da puta.
–O que!? Não! A gente brigou, ela tava brava e foi andar, mas ela só transa comigo!
Emanuelle não desconfia da acusação, mas percebe a tensão. Entre o inglês e o francês, Nicolas tenta apaziguá–los. Enquanto mostra as carteirinhas de estudante a Randall, explica a Emanuelle, em francês, que o caminhoneiro a acusa de ser uma vadia.
–Bem que ele queria que eu fosse!!!
E Randall insiste:
–Os caras falaram que tinha uma putinha gostosa andando lá entre os caminhões.
E Nicolas para Emanuelle:
–Shhh, estou defendendo você, estou defendendo toi!
E Nicolas para Randall:
– Calma, calma, por favor! Nós somos estudantes, olha as nossas carteirinhas!
O motorista analisa com desconfiança os documentos, mas surpreende:
– Entendo… Então esse cara falou que ela era uma prostituta, e ela não é?
Nicolas assente. Randall dirige de volta ao posto, estaciona e diz:
– Me esperem aí. Dez minutos.
O que se passou naquele intervalo nunca foi dito. Mas Nicolas pensou em alguns desfechos depois de descobrir que o caminhoneiro era um veterano da guerra do Vietnã e que seu único desejo ao lhes dar carona era dar um jeito de estuprar sua namorada.
Após o incidente, não leva mais do que três horas para uma nova parada, sob um pretexto qualquer de Randall. Emanuelle escolhe ficar dormindo no caminhão.
–Vem, eu te pago um lanche –oferece o americano ao garoto.
O lugar onde estacionam é familiar, literalmente. Além de lembrar qualquer outro posto de conveniência americano, com seus fast foods e bombas de gasolina, famílias lancham, enquanto crianças brincam no parquinho sobre a grama bem aparada.
É nesse cenário que Randall conta tudo o que se passou no Vietnã, para tentar justificar sua forma torta de agir e de pensar, e revela pela primeira vez detalhes de histórias que envolvem a falta de opção e a anestesia moral de uma guerra.
–Depois do Vietnã, eu nunca mais senti nada.
Nicola o escuta por três horas enquanto fuma os vinte cigarros de um maço de Malboro. Seus dedos agitados o delatam.
“Para ele, matar uma barata ou nos matar era a mesma coisa. Se eu tivesse dito uma palavra errada, o final poderia ser diferente.”
Já é noite quando voltam ao caminhão. Ao entrarem na cabine, Randall acende a luz e repousa por alguns segundos o olhar sobre a sua imagem refletida no parabrisa.
–Hoje eu senti.
Depois disso, o caminhoneiro está decidido a mudar seu itinerário para levar Nicolas e Emanuelle até o ponto final da viagem, assegurando–lhes proteção total dali em diante.
“Ele virou um herói. Entre aspas.”
Lições do asfalto
Ao chegar ao aeroporto de Paris, Nicolas encara Emanuelle:
–Estamos vivos. Que bom que estamos vivos.
O relacionamento terminaria três meses depois.
Os amigos de Nicolas passaram a estranhar seu comportamento. “Eu voltei mais sério. Randall era um psicopata. Foi um choque pensar que faltó muito poco para a minha vida acabar aos 19 anos. Os bruxos mexicanos dizem que a morte está sempre a um metro à sua esquerda. É bom você se lembrar todo dia dela.”
A estrada é democrática, mas não é para qualquer um. É preciso uma dose de “inconsciência”, como observa Nicolas, no alto dos seus 37 anos. Para viver radicalmente na estrada, no entanto, é preciso ainda mais. “Você não pode ter nada que te importe.”
Quando deixou a França, aos 24–sem saber que seria para sempre–, Nicolas sofria por amor. “A pior dor é a dor de amor”, considera, com a propriedade de quem já viveu por meses como mendigo em ruas brasileiras, acompanhado da imprevisibilidade do dia seguinte.
Se a viagem pelos EUA lhe deu a dimensão da morte, a pelo Brasil lhe daria lições sobre como viver. “A estrada ensina a confiar na vida. Se você cai na pior, você aprende a esperar um pouquinho. A vida te dá tudo, se você segue os seus sonhos.”