EM BUSCA DA VIDA ENTRE AS MONTANHAS

Aventura pelo norte da Argentina a caminho de Iruya

Clichetes
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por Fabiana Nanô

D ecidimos, então, correr o risco. Afinal de contas, não era a primeira vez que iríamos nos aventurar no norte da Argentina, em terras pouco procuradas pelos turistas, mais inclinados a conhecer os shows de tango de Buenos Aires, os vinhos de Mendoza ou o gelo da Patagônia. Nós, não. Estávamos há dias nos embrenhando ao norte, cada vez mais ao norte, subindo não só no mapa, mas em direção ao céu, a altitudes sempre acima dos 2.500 metros. Respirando um ar semiárido e rarefeito e observando as transformações na paisagem — da planície dos pampas às montanhas dos Andes.

Buenos Aires, Rosário, Córdoba, Catamarca, Cafayate, Salta, Purmamarca, Tilcara, Humahuaca. Quando chegamos a este vilarejo, já estávamos habituados à paisagem repleta de montanhas coloridas — e nunca nos cansávamos de contemplá-las, em sua beleza encantadora, em sua majestade inescrutável. As montanhas do norte argentino não são simples montanhas — elas são a síntese suntuosa de milhões de anos de sedimentação. Dentro, concentram a sabedoria do mundo. Fora, manifestam-se em porte e em cores, em todos os tons do arco-íris.

Foi em meio a esta paisagem mágica que tomamos a decisão: de Humahuaca, seguiríamos para Iruya, um povoado de pouco mais de mil habitantes encravado nas montanhas coloridas. Lá, a estrada acaba antes de chegar. Lá, os pés são o meio de transporte mais eficiente, e as mãos, as ferramentas mais habilidosas.

A 4.000 metros de altitude, avistava-se o vale montanhoso. O ônibus, precário, se preparava para a descida de mil metros em uma estrada estreita, sinuosa e cercada de abismos — e os nossos semblantes pareciam os únicos preocupados. Os passageiros locais, tão acostumados quanto o motorista a passar por curvas de menos de 90° sem grades ou proteção, aguardavam tranquilos e silenciosos o fim do caminho de terra e pedregulhos demarcado pelos traços de pneus de outros veículos que por ali passaram. Se não fosse isso, impossível seria definir o que era estrada e o que era paisagem.

Foto: André Melo
Foto: André Melo
Foto: André Melo

Como todos esperávamos, o ônibus parou. Descemos e, de mochila nas costas, seguimos a pé por uma trilha apertada, acompanhados por um fraco curso d’água, de um lado, e por imponentes montanhas, do outro. Meia hora depois, chegávamos a Iruya.

De duas ruas principais consistia o vilarejo. Começando no nível do curso d’água, ambas subiam em 45°, em direção ao topo da montanha, uma em frente à outra. Cada qual com suas seis ou sete quadras, compostas de casas, hospedagens, restaurantes, uma escola, uma igreja e um comércio pouco significativo, já que a subsistência é a forma de vida nesse eldorado onde começa e onde termina o mundo. Cultivam-se certas plantas típicas e criam-se rebanhos para se chegar à mais sutil de todas artes — a culinária.

Misturando carnes de ovelhas, cabras e lhamas com milho, batatas e quinoa, nascem sopas, tortas, guisados e empanadas. Pratos quentes e calóricos, ideais para munir o corpo contra o vento, a chuva, as baixas temperaturas e o tão temido “mal de altitude”. Quem os prepara são as “cholas”, cuja presença em território argentino denota a proximidade geográfica com a Bolívia e a distância imaginária com que pensamos sobre nossos “hermanos” vizinhos — tão habituados estamos, nós brasileiros, a supor tipos europeus portenhos, que esquecemos que os índios dominam boa parte da paisagem setentrional da Argentina.

As “cholas”, como são conhecidas as bolivianas autóctones, também existem no norte argentino, onde já desfilam com suas “polleras” (saias rodadas), seus xales, tranças e chapéus. Com cores menos vivas que as das vestimentas bolivianas, mas, ainda assim, presentes. E foram essas cholas que encontramos na nossa breve passagem por um restaurante composto de dois cômodos, como uma extensão da casa da família. Foi uma chola, uma senhora, que nos abrigou em sua pequena hospedagem onde descarga no vaso sanitário e água quente no banheiro eram privilégios.

Dormimos, para no dia seguinte acordar e subir as montanhas do outro lado. Atravessamos o córrego e empreendemos a caminhada. As crianças vinham nos observar em frente aos portões de suas casas, com o olhar curioso. Nós olhávamos aquela imensidão de terra acima de nós e nos perguntávamos onde estaria o topo, impossível de localizar devido à névoa. Um passo após o outro, durante algumas horas, e alcançamos não o topo, mas um mirante, alto mirante. Lá, o tempo parou.

À nossa frente, havia montanhas e mais montanhas, picos de mais de 4.000 metros e de múltiplas colorações, tão inúmeras como as paixões humanas. O ar puro e rarefeito era um convite às lucubrações, à meditação, ao autoconhecimento — ao entendimento de si e do mundo… Era quando tudo fazia sentido. Era aquela sensação de que valeu a pena tomar uma decisão arriscada e ultrapassar os nossos medos. Só havia um nome para aquilo: liberdade.

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