FÉ, POLÍTICA E TRADIÇÃO: PÍLULAS DE BELÉM

Vestindo a carapuça de turista na capital paraense

Clichetes
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por Andréia Martins e Carolina Cunha, em Belém (PA)

É gua! No Pará, essa expressão é como se fosse um “poxa vida” genérico ou um “bah!” dos gaúchos. Égua pode ser utilizada em qualquer situação que cause espanto, por exemplo, para reprimir um turista paulistano que chegue pedindo açaí com granola e bananas.

Foto Andréia Martins
O CERAMISTA CARLOS AMARAL EM SEU ATELIÊ NO SOURE (PA)

O jeito mais fácil — e provável — de receber um olhar invocado de um paraense de Belém é pedir um açaí com bananas. Lá, açaí se come com pratos quentes, geralmente no almoço, podendo acompanhar porções como peixe frito, carne de sol, farinha e charque.

Servido gelado, deve ser puro e sem bananas. Quem conta é a guia Rosângela Martins. “E não ofenda o paraense dando uma xícara de açaí. Dê logo uma tigela”, nos diz ela, confirmando a fama de bom apetite dos conterrâneos.

Rosângela é uma das mais conceituadas guias turísticas de Belém. Em uma viagem de pouco mais de três horas, ida e volta à praia de rio de Mosqueiros, a 70 km da capital, a conversa turística logo passa das questões gastronômicas para as políticas.

Primeiro a reclamação do governo do Rio de Janeiro sobre a divisão dos royalties do petróleo. O governador disse que o Estado não conseguiria sobreviver sem o dinheiro dos royalties. Uma ofensa aos paraenses, ela diz. “O Pará não recebe nada do imposto cobrado na mineração”, reclama ela, lembrando a degradação ambiental da atividade.

Sobre o referendo que queria rachar o Pará em três, mais uma negativa. “Com todo o glamour, nós dissemos não”, conta Rosângela soltando uma gargalhada tímida.

“Está vendo aquelas placas?”. Ela tem orgulho do patriotismo dos paraenses e das bandeiras do Brasil e do Estado impressas nas placas dos carros. Em seguida, cantarola o hino do Pará inteiro, causando estranheza nas duas turistas, que tentam, mas não conseguem se lembrar nem da primeira frase do hino de seus Estados de origem.

Torcedora do Paysandu, Rosângela comemora sempre que vê a bandeira azul do time pendurada nas casas do caminho. Pergunta se gostamos de futebol. Ela guarda na memória como se fosse hoje a participação do time na Libertadores, em 2003, quando venceu o Boca Juniors fora de casa, com um gol do camisa 7, Iarley, ainda no primeiro tempo.

O acontecimento é chamado de “o dia em que o impossível aconteceu”. A vitória até faz esquecer que no jogo de volta, os argentinos bateram o time paraense por 4 a 2, passando para as quartas de final. Um detalhe que os torcedores do Paysandu optaram por apagar da memória.

Uma das memórias de infância que Rosângela ainda guarda vem de Cametá. O pai tinha o hábito de ouvir rádios de Caiena, na Guiana Francesa. Certa vez, na escola, a professora perguntou se alguém sabia falar francês. A garota não titubeou e encheu o peito para falar no idioma europeu. O que se ouviu, inspirado no que se fala por lá:

- Já me vu! (já vou).

TRADIÇÃO

A cidade de Soure, a mais importante da Ilha de Marajó, vive do artesanato, da pesca e da criação de búfalo. Muitos ficam soltos nas pastagens ao longo das estradas.

No centro, na terceira rua, o artesão Carlos Amaral leva adiante uma tradição que está ligada às suas raízes indígenas: a cerâmica marajoara. A poucas horas da ceia de Natal, Rosângela, a mulher de Carlos, recebia os visitantes como um dia normal na residência do casal.

Logo na entrada, a casa estreita exibe as peças feitas por Carlos em frágeis prateleiras. As paredes são ocupadas por recortes de jornal, fotos do casal com turistas famosos e desenhos de talismãs indígenas. As telhas com pequenos vãos deixam entrar gotas da chuva que cai lá fora, água bem vinda após dois meses de seca. Rosângela apresenta as peças e seus significados ao visitante.

“Quem levou uma dessas foi o Richard, aquele apresentador do SBT, aponta ela para um objeto redondo com olhos e uma boca circular. O repórter do programa Natureza Selvagem tinha se encantado por um defumador em forma de sapo, usado em rituais de purificação.

No cômodo ao lado, Carlos espera a mulher terminar de falar para entrar em cena. Sentado, rodando a argila, uma peça ganha forma enquanto ele conta a origem de seu trabalho.

Aprendeu o ofício com a avó, descendente da antiga tribo Aruã, extinta pelos colonizadores portugueses. A tribo aruã era conhecida por ser a mais numerosa na ilha e a mais valente nos combates com os portugueses. Sua cultura nativa data de 2.500 anos atrás e teria perdurado até o século 18, quando começou a se dispersar pela região do rio Amazonas até desaparecer por completo.

Como Carlos faz questão de frisar aos visitantes, não se trata de uma peça decorativa ou puramente arte, cada cerâmica produzida por ele, reconstrói parte de sua história.

QUESTÕES DE MANGAS

Belém tem cerca de quatro mil pés de mangas. Em dezembro, quando chove muito, as mangueiras ficam carregadinhas de frutos. Quem busca se refrescar, basta pegar uma manga do chão. Mas há quem não goste das danadas. Nesta época de quedas anunciadas, muitos motoristas já sabem o que fazer: contratar um seguro de carro que cubra sinistro em caso de manga madura. A dica é ler as linhas das cláusulas do item “causas naturais”.

UM CAMPEÃO ANÔNIMO

Às 6 da manhã de um sábado, a hidroviária de Belém está cheia. É véspera da noite de Natal e o navio que segue para a Ilha do Marajó está lotado de passageiros com suas compras natalinas. Logo desliza pelo rio de foz que mais parece um mar. Ainda é cedo e o sol desponta numa linha alaranjada.

A embarcação de madeira tem dois andares, com direito a área vip com ar-condicionado. Na parte aberta, a maioria dos passageiros suporta o calor de bermudas e chinelos.

No meio, quem chama a atenção é um casal de turistas gringos que usam sandálias havaianas, e um grupo de três adolescentes com cabelos coloridos em formato moicano, legítimos representantes da moda cyber do tecnobrega.

Três horas depois, chega-se ao Porto de Camará. Assim que a balsa onde viajamos atraca, fogos de artifício pipocam no céu. “Estão fazendo festa por causa de um lutador daqui que ganhou um campeonato”, diz o motorista da van.

Idelmar é um lutador de Vale-Tudo em ascensão, irmão de Yuri Marajó. Estava chegando para passar uns dias com a família, depois de ganhar um título no campeonato Jungle Fight. Viajava anonimamente na embarcação.

O interesse por combates começou cedo. Desde garotos, os irmãos praticam a Luta Marajoara, arte marcial de origem indígena. Começaram as primeiras disputas na fazenda onde o pai vaqueiro morava. Depois, foram treinar em Belém. Quando cruza o rio para o Soure, Idelmar costuma fazer o seu preparo físico nas praias próximas, como na paradisíaca Pesqueiro. Muitos treinam nestas areias, às vezes, utilizando a criatividade em exercícios pesados como puxar cordas com o corpo ou levantar rodas de caminhão com as mãos.

ENTRE ERVAS E A FÉ

Se idade é sinônimo de sabedoria, está explicado porque em um canto do mercado Ver-o-peso, um corre dor entre o velho mercado e a ala coberta que está em reforma reúne apenas senhores e senhoras vendendo os segredos para amarrar o amor, espantar o mau olhado e curar dores, em pouco mais de uma dúzia de barracas.

Foto: Andréia Martins
BETE CHEIROSINHA, EM SUA BARRACA DE ERVAS NO MERCADO VER-O-PESO, ONDE ESTÁ HÁ 43 ANOS. ELA USA SLOGAN “EU VENDO SAÚDE”

As soluções para esses problemas — ou qualquer outro que você imaginar — foram aprendidas cedo, com pais, avós e bisavós, e vêm sendo aprimoradas ao longo dos anos, misturando ervas e óleos naturais. Orgulhosas, as erveiras exibem seus adeptos, entre anônimos e famosos, com fotografias de quem já passou por lá. Gente que vai de Ratinho a Ronaldinho Gaúcho.

No final do ano, a bola da vez é o kit de Ano Novo. No de Dona Silvana, estão duas garrafas para o banho de sete ervas que oferece um descarrego energético para começar o novo ano. O preparo inclui plantas como Mucura-caa, cabi, cipó de alho, vence tudo e comigo ninguém pode.

Segundo a erveira, o banho atrai sorte e prosperidade e deve ser tomado antes da meia-noite, com pensamento positivo para se alcançar o que se quer. O kit inclui ainda ervas para defumação da casa, que deve ser feita em todos os cômodos após a virada do ano.

Outra senhora bem conhecida na área é Beth Cheirosinha, erveira há 43 anos. Assim que avista um novo interessado se aproximando solta logo o seu simpático “oi querido, o que você procura?”. Poucos resistem ao assédio da dama. Ela tem garrafadas com itens bem sugestivos como Faz-querer-quem-não-me-quer, agarradinho, chega-te-a-mim e chora-nos-meus-pés.

Com direito a canal no YouTube — procure lá por Beth Cheirosinha — e convites para dar palestras, ela carrega uma herança especial: é filha de Maria de Lourdes das Mercês, mais conhecida como dona Cheirosa, um dos maiores mitos entre os erveiros. Assim como a mãe, já se tornou patrimônio paraense.

No aeroporto, a sacola não despachada com três kits de Ano Novo são motivos de uma intervenção do segurança.

- Garrafa? Vidro? Objeto pontiagudo, resmunga o segurança. Sozinho, ele percebe do que se trata.

- Ah, são os kits, né? Estão liberados.

O comigo ninguém pode já começava a fazer efeito.

JADER, A LENDA

Só um famoso teria uma vila inteira batizada com seu nome. O ex-governador do Pará tem a sua, a Jaderlândia, na periferia de Belém. Mas o homenageado não é tão amado assim. Jader Barbalho, é persona non grata de nove entre dez taxistas, quatro entre cinco botequeiros de Belém. Pela experiência jornalística, taxistas costumam ser um bom termômetro.

Jader tornou-se personagem folclórico no Estado, foi cassado pela Ficha Limpa e depois “descassado” no Supremo Tribunal Federal, e suas obras e promessas foram elevadas a lendas urbanas. Nesse contexto, ele se tornou uma das maiores inspirações para novas piadas na terra natal. Como turista, você não vai conseguir escapar delas.

Diziam que para entrar no céu a pessoa precisava chegar num cavalo branco. De repente, Deus repara que lá vem o Jader com um cavalo branco. Ele estranha e se pergunta: caramba como será que ele conseguiu esse cavalo branco? Uma olhada a mais, e lá vem São Jorge a pé.

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