FÔLEGO DE PIFEIRO

Mestre Sebastião Biano, último integrante da formação original dos Pífanos de Caruaru, chega aos 94 anos

Clichetes
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por Andréia Martins e Carolina Cunha

O primeiro som que Sebastião Biano tirou foi aos cinco anos de idade, brincando no sertão de Alagoas. Em 1924 ele e o irmão Benedito, de 11 anos, enrolaram uma folha de abóbora como um canudinho, fizeram quatro furinhos e assopraram. O assobio surpreendeu os meninos, como numa molecagem que resulta em algo grandioso. Foi assim, de brincadeira, que Sebastião descobriu o que chama de dom de Deus. No canto da roça, observando os filhos, Manoel Clarindo Biano se lembrou dos tocadores de pífanos que ouviu quando criança. Não tardou a imaginar uma banda de pife formada pelos filhos.

- Vocês vão aprender a tocar pife, disse o pai.

- Pai, o que é pife?, rebateu Sebastião.

- É um pedacinho de madeira furado com seis buracos, sete com o de sopro. Assopra e faz aquele som e com os dedos, faz música, respondeu Manoel.

Manoel era tocador de zabumba e presenteou os garotos com duas flautinhas feitas de madeira de taquara, tipo de bambu encontrado no Nordeste. Ele queria que os dois continuassem a tradição da Zabumba de Cabaçal, grupo do povoado de Mata Grande.

Os meninos aprenderam a tocar observando os músicos. Quando ficaram bons, o pai se juntou a eles com a zabumba e pediu para um primo tocar a caixa. Desde então, Sebastião toca o instrumento quase todos os dias nos últimos 89 anos. Aos 94 anos, o alagoano desafia o tempo e o fôlego sendo o último integrante da formação original dos Pífanos de Caruaru. É o principal compositor e primeiro pife, o que toca as melodias principais em ritmos como o baião, forró, xote, xaxado e marcha.

“Não sei ler não, mas a música nasceu na minha cabeça. Ela vem no meu ouvido, vem feita”, conta o Mestre Sebastião, que nunca leu uma partitura. Aprendeu a diferenciar as escalas calculando as distâncias dos dedos no buraco. Tampado inteiramente, tampado pela metade ou sem nada. Mudando a força do sopro, ele consegue extrair diferentes notas, das graves às agudas. Ele diz que as notas que você pode encontrar no pife são infinitas.

Início de junho. Chegamos a Piraporinha, na zona sul de São Paulo. Ali, os números das casas não seguem uma ordem numérica e encontrar uma casa requer uma caminhada extra, um vai e vem. Se a casa de portão verde não estivesse com a porta aberta, não seria possível enxergar os quadros pendurados na sala, um deles com três homens com chapéu de cangaceiro tocando pife. Era ali.

Um senhor de óculos, estatura baixa, cabelos brancos e bigodes aparece para nos receber em passos até que rápidos para quem está prestes a completar 94 anos. A vontade de começar a conversa é muita, mas é preciso desacelerar, entender o ritmo da memória quase centenária.

Antes de começar a contar sua história, Sebastião pede para assistir a um DVD de um show feito em São Paulo em 2011. Atento, espera ansioso o final e chama a atenção para o videoclipe da banda, na qual eles aparecem dentro de uma Kombi que flutua no ar. “Coisa bonita de cinema”, ri. Ele faz questão de dizer também que todos os instrumentos são feitos por ele, que continua mostrando agilidade nas mãos quando toca o pife.

Sebastião emenda causos dos tempos antigos, fala sem parar sempre com muitos detalhes. “Ele se lembra mais dessas histórias do que do que aconteceu há dois, três dias atrás”, diz Betinha, filha do músico.

Na sala da casa construída por ele em 1976, ano em que chegou a São Paulo, Sebastião não deixa a vista o Grammy Latino recebido em 2004, como melhor grupo regional de raiz, e na parede guarda poucos retratos. Nas fotos estão os irmãos e o pai. Com a morte de Manoel em 1955, a zabumba foi assumida por João, o primeiro neto do fundador a integrar o grupo, e os filhos seguiram o pedido do pai de levar os Pífanos de Caruaru adiante. Irmãos, filhos e netos se revezaram nesses quase 90 anos do grupo.

“Naquele tempo não tinha palavras de música. Música era toque, e músico, tocador. Não tinha também com quem conversar. As crianças aprendiam a falar ouvindo os pais, pois todo mundo morava muito longe, só se encontrava quando ia à feira”, relembra ele, que até aquele momento, derramava lágrimas com frequência. Ele para, pega um lenço já guardado no bolso e leva com cuidado aos olhos.

- Tudo bem seu Sebastião?

- Tô… É que qualquer coisa que eu tô conversando meus olhos enchem de água.

O problema começou depois de uma cirurgia de catarata, que segundo ele, melhorou e muito sua visão. No entanto, as lágrimas não param mais. Tornaram-se indomáveis.

- Fui ao médico e ele disse que deixaram aberto o lugar da lágrima. Ela não tem onde acumular e vai saindo. Agora eu vou conversando e chorando sem querer. As pessoas dizem que é bom porque meus olhos vivem lavados.*

OS BIANO PELO NORDESTE

Em 1926, devido à forte seca que atingia Alagoas, Manoel decidiu que era hora de se mudar com a família. Nos últimos anos, mesmo em meio a dificuldades, ele os filhos seguiam se apresentando em feiras, novenas e até velórios de crianças. mas era hora de deixar Alagoas.

Manoel queria chegar a pé até Juazeiro do Norte, no Ceará. Quando faltavam 26 léguas para chegar ao destino final, a família parou numa fazenda e soube da notícia de que chovia em Mata Grande.

- Era Semana Santa. Nesses dias, ninguém fazia nada. Tudo ficava parado. Então ficamos ali. Aí chegou a notícia de que a chuva tinha voltado a Alagoas. Os familiares voltaram, mas meu pai preferiu ficar, conta Sebastião.

Os Biano nunca chegaram a Juazeiro. Passaram por diferentes Estados e cidades do interior do Nordeste, sempre tocando o pife, até se estabelecerem em Caruaru, em Pernambuco, no final da década de 1930. Antes disso, uma passagem merece destaque na história dos Biano.

ENCONTRO COM LAMPIÃO

Enquanto Manoel procurava um lugar para estabelecer a família, a vida de trabalho e dos Pífanos de Caruaru seguia. Em 1925, o garoto de oito anos e seu grupo animavam uma novena na capela de uma fazenda em Pernambuco. No meio do dia, um homem temido por todos saiu inesperadamente do mato acompanhado de 50 homens montados a cavalo e armados. Era Lampião e seu bando.

- A gente tremeu. Da cintura pra baixo deu uma enxurrada. O medo apertou, a língua enrolou, ninguém falava com ninguém, ninguém via ninguém. Parece que estou vendo ele agora, relembra Sebastião rindo.

Lampião entrou na capela e interrompeu a missa dizendo que queria tratar de um negócio com o padre. Nervoso, o padre tremia mais que vara verde. “De certo pensou que ia morrer”, comenta o alagoano. O cangaceiro queria pagar uma promessa a uma santa. Mas antes de ir embora, Lampião olhou para os garotos perguntou se eles sabiam tocar seu toque.

Sebastião lembra que a primeira coisa que pensou foi como o homem era feio e tinha os cabelos grudentos. Depois, agradeceu a Deus porque tinha aprendido a tocar a música de tanto ouvir as pessoas assoviando. Aprenderam primeiro a melodia e depois as palavras. O pedido foi atendido, para a sorte de todos.

Passados tantos anos, Sebastião ainda lembra dos versos que cantou acompanhado do pife naquele dia:

Tenente Zé das Neves já subiu no nevoeiro

Com medo do galope do rifle dos cangaceiros

É Lampi, é Lampi, é Lampi, é Lampi, é Lampião

Meu nome é Virgulino o apelido é Lampião

Lampião desceu a serra, deu um baque na cancela

A mulher de Zé Lucena Lampião carregou ela

É Lampi, é Lampi, é Lampi, é Lampi, é Lampião

Meu nome é Virgulino o apelido é Lampião

Lampião desce a serra e passou lá na rabeira

Convidando as moça toda pra dançar mulher rendeira

Olê mulher rendeira, olê mulher renda

Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar

Lampião tava dormindo e acordou assustado

Deu um tiro na braúna achando que era soldado

Atirou na braúna pensando que era um soldado

Sebastião diz que não sabe se ele gostou mesmo. Mas pelo que o cangaceiro disse aos garotos, saiu da novena satisfeito.

- Tocamos, toamos e aí paramos. Ele virou-se para os dois guarda-costas dele e disse: olha essas crianças como é que tocam, e vocês, dois cavalão desses, não tocam piroca nenhuma”.

O encontro com Lampião está entre as três vezes que Sebastião diz ter sentido medo na vida. Ele suou frio quando enfrentou uma tempestade em pleno mar a caminho da ilha de Itamaracá, em Pernambuco, e ao tocar na escada rolante do metrô de São Paulo em movimento, sem apoio nenhum. A banda toda teve que se ajeitar nos degraus.

Depois de uma tarde de conversa, Sebastião mostra os pifes que ele mesmo faz e tenta ensinar a técnica do sopro. “Acho que não tem outro tocando sopro há tanto tempo. Já até nos deram um título de banda mais antiga”, diz ele, curioso buscando uma confirmação.

A música escolhida para a aula rápida, em plena sala, é Asa Branca, de Gonzagão, que Sebastião chama de hino do Nordeste. Ele toca a música no pife em seis tons diferentes. Certamente poderia tocá-la em mais outros dez tons. Aos 94 anos, os dedos continuam rápidos e lúcidos na troca precisa das notas. Assim como o sopro.

A casa onde Sebastião mora em São Paulo foi construída por ele mesmo, perto do local onde ele desceu do ônibus que o trouxe do Nordeste em 1976, quase ao lado da represa do Guarapiranga. Hoje mora cercado pelos filhos na vizinhança e se lembra do campo aberto que era o bairro quando chegou. A mudança foi em busca de mais oportunidades, já que a banda ganhava mais tocando por aqui do que na terra natal.

Em toda a história da banda, um dos momentos que Sebastião se lembra com muito orgulho foi o reconhecimento do Ministério da Cultura em 2006 pela contribuição do grupo como representante da cultura popular brasileira. A condecoração foi recebida das mãos do presidente Lula e do então ministro Gilberto Gil. A foto e o certificado estão pregados na parede da sala da casa de Sebastião. “Quase tremia, não é moleza não”, diz ele que ao se lembrar do encontro, não esconde admiração pelo conterrâneo e pela lembrança.

Nessa hora, não dá para saber se as lágrimas que correm são pela emoção ou por falta de um lugar para serem guardadas.

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