NÓS, AMORA E A ESTRADA

Aos 20 e poucos anos, ela deixou a metrópole, realizou o sonho de ter uma kombi e pegou a estrada para vivenciar a permacultura.

Clichetes
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por Marina Hion

Marina e a kombi Amora: prontas para a estrada

Pra contar essa história, tenho que dizer que tudo começou quando eu nasci, em 1992. Mas se você pensar bem, é difícil definir quando começa qualquer coisa, já que, na verdade, eu não comecei em 1992, mas comecei numa conjunção do nascimento do meu pai em General Salgado, com o nascimento de minha mãe em Piracicaba. Antes disso, talvez tenha começado com o Big Bang ou quando Deus criou o mundo, depende da sua crença.

Mas vamos lá, sendo pragmática, começou em algum momento depois de 2011, quando eu já estava na faculdade, morando em São Paulo com uma vida (vamos reconhecer) muito, mas muito mesmo, privilegiada.

Voltando um pouco mais lá pra trás, quando eu era criança na escola, me lembro de aprender que o êxodo rural aconteceu porque as pessoas deixavam suas vidas na roça em busca de melhores condições de vida na cidade, que possuía mais ofertas de trabalhos, já que com a mecanização dos trabalhos na roça muitos trabalhadores perderam seus empregos. Além disso as cidades possuíam também saneamento básico, mais serviços de saúde e educação, e por aí vai… (e, por que não, shopping!)

Dava orgulho de ser paulistana e ter nascido nessa metrópole exemplar onde todos os sonhos se realizam, um grande modelo com tudo de bom e do melhor que uma cidade com crescimento desordenado pode oferecer. Acontece que, voltando lá pra 2011, o tempo passou, minhas olheiras cresceram e eu cansei. Eu sentia que a cidade me sugava. Você acorda de manhã para pegar o metrô lotado para trabalhar oito horas diárias comendo mal, respirando poluição e ouvindo os barulhos dos carros e construções. Quantas vezes você já leu essa descrição do seu dia a dia por aí? Quantas vezes um clichê pareceu muito real?

Você tem que abrir passagem no ônibus para conseguir descer no ponto, sente dor de cabeça, sua respiração é péssima, daí no happy hour vai beber, fica sem dinheiro no fim do mês, enquanto isso seu aluguel aumenta. Se você pensar bem, não pode ser normal doze milhões de pessoas se empilharem em um espaço só. Enfim, eu tinha vinte anos e estava exausta quase o tempo todo.

E não só isso, além de insatisfeita com minha vida atual, o futuro não me parecia muito melhor. Eu percebi que o caminho trilhado pelas pessoas ao meu redor não era exatamente o que eu queria para mim, mas aparentemente era o que me sentia impelida a fazer, inconscientemente, ao ver os outros fazerem. Eu tinha que casar, ou me juntar com alguém, alugar um apartamento, mobiliar ele bem bonitinho com todas as panelas de teflon que sempre sonhei, trabalhar 44 horas por semana para sustentar um ritmo de vida insustentável (e pagar todo aquele consumo), tirar férias uma vez por ano e sempre desejar descansar mais, ter filhos, trabalhar um pouquinho mais, ir visitar a família, trabalhar pra pagar aquela viagem de férias, sair com os amigos uma vez, trabalhar só mais um pouco ali e… Morrer?

Era real que, apesar de ser autônoma e trabalhar de casa, outro privilégio que sei que tive, eu acordava cansada. Às vezes onze horas, talvez meio dia. Às vezes acordava com o barulho de uma britadeira na minha janela. Ás vezes eu não tinha força nem pra sair de casa, e não colocava sequer a cara para fora do meu apartamento. Foi assim que percebi que eu estava bem infeliz. Parecia que a vida não bastava, e era um ciclo sem fim de querer descansar e não poder, de correria, de barulho, de caos.

Fiquei um ano nesse ritmo, só trabalhando, já formada, e aos poucos percebi que precisava sair de São Paulo. Era uma necessidade mais do que urgente. Sabia que dava conta de trabalhar de qualquer lugar, que dava pra segurar as pontas. No final de 2015 decidi fazer meu janeiro diferente e fui viajar junto com meu parceiro, o Jonatas, que também sentia os mesmos incômodos que eu. Fomos parar no interior do Rio Grande do Sul, onde ficamos um mês fazendo trabalho voluntário e morando em uma comunidade na área rural. Não tinha transporte para lá durante as férias escolares, o lugar era ao lado de uma represa, mas frequentemente faltava água… As condições não eram as melhores, mas ali eu conheci a vida no campo, a permacultura, e o êxodo urbano.

Jonatas Bueno e Marina: juntos eles criaram o Permaestrada para compartilhar suas experiências na estrada

Durante esse um mês descobrimos que era possível viver fora da cidade. Isso não é lógico para quem nasceu e viveu em São Paulo ou em uma cidade grande, onde o campo parecer ser uma realidade distante. Imagine viver a vida inteira sem sequer considerar que poderia haver uma vida fora daquela caixinha de concreto que você nasceu. Foi preciso ver e viver com nossos próprios olhos. Sentir, apalpar, cheirar. Na verdade, não é nem pensar que não existe, mas sequer pensar que talvez, assim, só talvez, essa seja a vida que você quer. Nem que seja por um tempo, seja um ano, cinco, dez anos, ou a vida inteira. Talvez a vida no campo seja a vida pra você.

Foi quase um choque pensar que, no fim, a gente não precisava trilhar aquele caminho que víamos no horizonte da janela do nosso apartamento no Butantã. Que havia outras possibilidades de vida e não só de viver, mas viver bem. Muito bem. Muito melhor, na minha concepção. Viver em comunidade, viver simples, viver com saúde, viver com segurança e, por que não, viver com internet, tecnologia, conforto. Afinal estamos no século XXI e a internet está em quase todos os lugares. Estar no campo não significa estar descolado da realidade que vivemos hoje, do mundo.

Lembro que no fim daquele mês eu sentia que não queria ir embora. Fomos embora porque precisávamos terminar a faculdade, mas era certo que precisávamos sair para fazer sei lá o que.

Sei lá o que mesmo.

Nossa despedida foi gradual. Quando voltei da viagem e pisei em São Paulo, senti hostilidade e senti um cheiro ruim. Senti que tudo que eu queria era entrar no ônibus de novo e gritar: Volta!

Mas algumas coisas são necessárias, e foi um ano de planejamento, para finalizar o que tinha que ser finalizado e nos prepararmos para partir. Mas muita coisa prende a gente, e no fundo dá sim aquele medo. Parece que a gente esquece que nossos pés não estão enterrados no chão, e a gente pode ir e vir, na verdade, a qualquer momento. Nenhuma escolha é tão definitiva assim.

No começo de 2017 realizei um sonho de infância, que era ter uma Kombi pra poder viajar. Nunca fez sentido ter um carro em uma cidade como São Paulo, mas na estrada ele poderia ajudar. Juntamos nossas tralhas e decidimos conhecer mais sobre permacultura e as diversas áreas que ela engloba.

(Fica aqui uma dica da Marion para ler sobre o tema: O que é permacultura?)

A kombi Amora. Sonho que virou realidade.

A permacultura busca criar ambientes humanos sustentáveis, integrados com a natureza, muitas vezes unindo conhecimentos ancestrais com novas tecnologias. Mas ela também é muito mais do que isso. Buscamos sítios, fazendas, comunidades que trabalhem com a permacultura, com agrofloresta, bioconstrução e educação para morar um tempo, trabalhando em troca dessa estadia e aprendizado. Assim nasceu o Permaestrada (siga o proejto no YouTube e no Instagram).

Fizemos um Curso de Design em Permacultura (conhecido como PDC) no IPEMA em janeiro para sair por aí um pouco mais preparados, e aquele sentimento de certeza permaneceu. A certeza de estar rodeada de pessoas incríveis em um mundo igualmente incrível, e que era hora de sair desbravar. A gente ficou um bom tempo com um pé cá outro lá, mas cada vez tínhamos menos vontade de estar na cidade. A sensação que São Paulo me dá hoje é de estranhamento, quase repúdio.

Passamos um mês trabalhando com agrofloresta no Epicentro Dalva (confira nossa experiência aqui) que foi uma experiência enriquecedora que confirmou aquela certeza de estar no caminho certo. Essa certeza de estar no caminho certo traz uma paz.

Talvez, no fundo, as pessoas levem essa história de se encontrar muito a sério, afinal não somos seres fixos, e sim somos seres cheios de desejos, sonhos e vontades diferentes, que às vezes podem até parecerem contraditórias. Somos moldados pelas pessoas e estímulos ao nosso redor, e isso nos transforma e nos muda.

Uma vez me disseram que quem nasce na cidade não é feito para aguentar o campo. Que ter uma vida sustentável não é essa mil maravilhas que muita gente pinta por aí. Que é fácil pra quem tem a possibilidade de escolher. Olha, sabemos disso bem. Vimos com nossos próprios olhos, sentimos na pele e nos músculos a dificuldade do trabalho braçal. Vimos aranhas armadeiras (uma espécie bem venenosa de aranha e que gosta bastante do microclima criado por canteiros agroflorestais) armando pra nós, vimos ratos invadir a despensa, tivemos dificuldade de locomoção, trabalhamos ao meio-dia com o sol quente na cabeça…

Mas vamos pensar bem, que tipo de conforto uma cidade nos traz?

Três horas em pé no transporte público para chegar no trabalho, trânsito, enchentes, poluição, estresse, ansiedade, violência, desigualdade, talvez uma britadeira embaixo da sua janela as sete da manhã?

David Holmgren, um dos pais da permacultura, em seu livro “Permacultura, princípios e caminhos além da sustentabilidade”, diz que nas sociedades modernas nós simplesmente aceitamos a enorme dependência que temos de sistemas de larga escala, frequentemente remotos, que fornecem itens básicos para nossa sobrevivência, enquanto ao mesmo tempo desejamos ter uma grande liberdade em nossas vidas, sem controle externo. Como isso é possível? Como é possível termos liberdade se não sabemos de onde vem o que nos é básico para a sobreviver?

“Parece que a gente esquece que nossos pés não estão enterrados no chão, e a gente pode ir e vir, na verdade, a qualquer momento. Nenhuma escolha é tão definitiva assim”

Vivemos descolados do todo que fazemos parte, e sequer percebemos, ou questionamos isso. Será tão difícil saber de onde vem, como vem, como é o processo antes, durante e depois das coisas que consumimos? Ter uma vida mais sustentável é saber, é cuidar, é ser responsável pelas suas pegadas no mundo. Basicamente o que buscamos hoje é vida em comunidade, consumo consciente, respeito aos seres vivos e a natureza em sua totalidade.

O mais estranho é que quando acordo às seis horas da manhã com o sol nascendo e vou para o campo trabalhar depois de tomar meu café quente sem açúcar, eu sinto que era isso mesmo que eu queria estar fazendo. Eu sinto paz, e sinto silêncio.

E tenho vontade de que outras paredes de concreto se quebrem para outras pessoas, que outras vidas e modos de viver e conviver se mostrem possíveis, que as pessoas questionem seu consumo, enquanto as relações humanas e com a natureza sejam cada vez mais valorizadas. Que sonhos se realizem, muitas vezes tão simples, porém tão distantes.

E, na verdade, espero que essas mudanças aconteçam tanto no campo como na cidade. Porque muita gente tem vontade de fugir sim, mas não é uma realidade possível para todos e, diferente do que muitos acreditam, é possível se ter uma vida mais sustentável no meio urbano. Já temos iniciativas do como hortas urbanas e a Permaperifa, por exemplo… Todas essas mudanças são uma realidade. E o mais incrível, grande parte do conhecimento já está aí, disponível.

É isso que acreditamos no Permaestrada, conhecer pessoas e projetos de outras formas de vida espalhadas por aí. Disseminar esse conhecimento e estimular as pessoas para uma nova leitura do campo, uma nova leitura delas mesma. Talvez a Amora, nossa Kombi 2007 seja um grito solitário no meio de outras demandas, no meio de greve geral, melhorias na educação, novas infraestruturas ou melhoria das universidades. Ou talvez seja a certeza de que precisamos do campo como nenhuma outra sociedade precisou na nossa História ocidental? Vamos andando com ela pelo Brasil e pelo mundo, procurando pessoas que possam dialogar um pouco com esses nossos sonhos e desejos.

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