O ANTIALɮGICO DE COMPOSTELA

Memórias alquímicas e sentimentais daqueles últimos dias em terra estrangeira

Clichetes
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por Michelle Braz

Arquivo Pessoal

Informações ao Paciente

T rês fatores desencadeiam a crise alérgica. Faltam n dias para voltar para casa, o saldo no banco é de n-1 exponencial e há n ao cubo de coisas para fazer (além da mala traiçoeira que nos aguarda). Uns sofrem de uma inquietação com súbitas crises de coceira, outros apresentam inchaços e olhos lacrimejantes. E nos casos mais sérios, falta de ar e náuseas. Aliás, impera uma dúvida diante de tantos sintomas ou a profecia de um grande negócio: como as agências de intercâmbio, os consulados, as embaixadas e Bruno de Luca ainda não se uniram com a indústria farmacêutica?

Talvez essa crise alérgica seja uma resposta — mescla de decepção com vingança — do nosso organismo. Após duros meses, ele já aceita resiliente o clima local: seja a chuva torrencial, a neve lamacenta ou o seco desértico. Todas as bactérias digestivas se adaptaram a ingrata dieta. E imaginemos o sistema imunológico, personificado num glóbulo branco com a fúria dos Titãs, abrindo um inquérito contra o Zeus cerebral: como assim voltaremos para nosso habitat em menos de 10 dias.

Devaneios à parte, o que fazer quando o período sabático em terra estrangeira anuncia seu fim? Muitos (re)visitam os lugares que lhes encantaram nos primeiros dias. Agora é possível admirar a beleza, com honestidade. Sem o deslumbre ingênuo do turista que fomos, sem a miopia dos nativos que nunca seremos. Mas ver é pouco. Buscam-se os timbres, os cheiros e as texturas. Tudo aquilo que justificou se deslocar para tão longe e por tanto tempo, mesmo com o dólar comercial (e fascista) a 2,45. Ou com o euro (lá vem o outro fascista) a 3,09. Melhor confessar: também é o período de compras de lembrancinhas horrendas a toque de caixa e um vertiginoso aumento do colesterol com a gastronomia local (ou no futuro churrasco em família).

Na crise alérgica do fim, sabe-se que cada um procura seu remédio antialérgico. Alguém encarna a pele de Val Marchiore e faz uma viagem-relâmpago para uma ilha grega. Outra pede ajuda aos parentes: surge uma comitiva consanguínea para a via sacra dos pontos turísticos. Há os que choram, preparam uma festa de despedida e descobrem seus talentos para discursos políticos. Outros fogem através de listas de presentes, de gastos e o que farão na próxima viagem. Em minha experiência pessoal, “meu antialérgico” tinha fama de curativo e vultos de transcendência: el Camino de Santiago de Compostela.

Advertências

Para a credibilidade dessa crônica-bula e/ou relato de viagem, vale ressaltar duas questões. (1) Todos os exemplos do parágrafo anterior são livremente inspirados em casos clínicos reais. Qualquer verossimilhança não é mera casualidade. (2) Aceitemos com humildade que algumas pessoas são seres superiores. Mestres do desapego, não sofrem de nenhuma crise alérgica do fim. No máximo, espirram três vezes seguidas enquanto arrumam as malas. Pelas redes sociais esbanjam saúde numa contagem regressiva-infernal. Cada dia (a menos) é registrado com uma fotografia. Primeiro de um familiar querido. Depois vem o cachorro. No dia seguinte, a bandeira do Brasil. Em seguida, o familiar com o cachorro e a bandeira do Brasil.

Forma farmacêutica e apresentação

Muitos são os caminhos que levam a Santiago e para todas as escalas de disposição física e sedentarismo. O mais “receitado” é o Caminho Francês, que atravessa o norte da Espanha e dura por volta de um mês. Suspeita-se também que é o caminho com a maior incidência de personagens excêntricos e artistas em busca de ascensão meteórica. Para obter a Composteleira, espécie de diploma de peregrinação, você precisa comprovar, no mínimo, 100 km a pé, certificados por carimbos em igrejas e hospedagens. No meu caso, só tinha uma semana em território espanhol e ainda queria a Composteleira para mostrar aos meus (futuros) netos. Optei, assim, por um trajeto do Caminho Português que consistia em um pouco mais de 100 km e duraria apenas e quase felizes cinco dias.

Contraindicações

O antialérgico de Compostela não é recomendado para escritores brasileiros. Segundo relatos do caso clínico O diário de um mago, o paciente Paul Habbit apresentou, após a realização do Caminho Francês, transtorno obsessivo-compulsivo na criação de best-sellers. Desde então, alguns agentes culturais, chancelados por um acordo secreto entre o Itamaraty e a Academia Brasileira de Letras, espionam a presença de escritores brasileiros em território espanhol. Em qualquer atividade suspeita — por exemplo, a compra de um saco de dormir ou tênis de trilha — a Embaixada Brasileira em Madrid é acionada, e o escritor, imediatamente deportado. (O subsídio para a espionagem literária só dá conta ainda dos escritores consagradíssimos. Dizem que FHC negocia com Mariano Rajoy, primeiro-ministro da Espanha, algumas permutas. A Academia Brasileira de Letras aguarda)

Narração posológica

Por um ano vivi na cidade de La Coruña, situada na Galícia. Transitei por uma pensão, um hostel e dois apartamentos. Estudei audiovisual e convivi sabe-se lá com quantas pessoas e culturas. Discutia cinema com galegos e almoçava com um casal de amigos baianos. Gosto de pensar na memória como alguém que procura o foco numa câmera. A minha é uma fotógrafa amadora. Não sabe balancear o branco, não entende de ISO nem diafragma, treme mesmo com tripé. A nitidez não me interessa: prefiro um exercício criativo e cambiante da realidade. O relato do meu antialérgico foi clicado nesse vai e vem. Foca e desfoca entre anotações ao estilo:

Budapeste, 3 de janeiro — Num tour de três horas (!), eu e José descobrimos que Franz Liszt era o Kurt Cobain do século XIX: causava frisson com sua madeixas quase pelos ombros. Michael Jackson passou por uma árvore, e o local agora é ponto turístico da Hungria. E o clímax: os banhos húngaros também auxiliam — quem diria? — na fertilização de rinocerontes. Após o tópico Animal Planet, fomos almoçar.

SALA SURREALISTA (Foto: Estefania Novoa)
SALA SURREALISTA | ESTEFANIA NOVOA

La Coruña, 30 de agosto — O apartamento (o último) é aconchegante e pequeno. Em cada cômodo uma cor aleatória. Duas semanas atrás, eu e Lucía, la gallega del pueblo, realizamos uma festa. A casa foi invadida por fitas semioticamente planejadas: o azul representa a Galícia, vermelho e amarelo, a Espanha. Deixamos a decoração como se vivêssemos num filme surrealista.

Agora é o último dia, e a festa acabou. Limpo a sala, o corredor e meu quarto. Torço para que o dono do apartamento não observe o teto. Retiro com cuidado as fitas, mas surgem pequenos pontos de parede descascada. Ali se registra o crime da nossa alegria.

No começo da noite, ajudo Lucía com a mudança para o seu novo piso, que servirá de depósito para as minhas malas por uma semana. Da cenografia surrealista do apartamento partimos rapidamente para o expressionismo alemão (na escadaria do mesmo prédio). El piso se encontra no quinto andar, sem elevador. Os degraus são irregulares com paredes em ângulos cubistas. A luz nas escadas sempre se apaga no penúltimo andar. Encaro a tarefa como “uma preparação para o Caminho”. Mas nenhum “Dr. Caligari” nos ajudou ou transformou o martírio em uma sessão de sonambulismo.

“¡Malditos madrileños! ¿Por qué hablas en el tiempo compuesto?” Lucía sempre zombava do meu severo e frígido espanhol. Contrariando a típica desconfiança galega, ela é uma pessoa afetuosa. Sem medo, o seu melhor está disponível. Tateia-se em jantares vegetarianos, conversas na praia e vídeos sobre os mistérios do universo. Num sábado, ela quis ver três filmes seguidos do Glauber Rocha. Queria entender o Brasil da mesma forma que eu esboçava alguma estética para a Galícia.

Naquela noite, exaustas, nos despedimos com a versão menos lírica sobre os possíveis reencontros da vida. El mundo es un pañuelo.”(= lenço de papel). Lucía me abraça e completo a expressão idiomática como uma boa aluna: “y tú eres un muco.”

La Coruña — Tui — O Porrino, 31 de agosto. Acordo cedo e arrumo a mochila. “Nueve euros y sin problemas en los pies”. Enfatizo os argumentos do vendedor da Decathlon enquanto questiono as cores do meu par de meias roxo-escuro-com-rosa-pink. Caminho até a estação de trem de La Coruña e compro uma passagem para Tui, de onde começaria o itinerário.

Primeira providência divina. Um casal de portugueses repassa o “guia de viagens” que eles tinham finalizado no dia anterior. Com marcas de desgaste, as 15 folhas impressas indicavam todas as etapas até Santiago. Sem saber, ganhei minha bússola: mapas com a descrição das paisagens, restaurantes, a localização e a distância entre cada albergue. Ainda em Tui, entro num café indicado pelo guia. Almoço cinco bolinhos de bacalhau sendo intimidada por oito plaquinhas de madeira com “ensinamentos de Paul Habbit”. As bússolas não são perfeitas.

À tarde, caminho entre as cidades de Tui a Porrino. Mentalmente, resmungo sobre o clima: cadê a chuva galega que acompanhava as minhas sestas? Não chove, não venta: faço o Caminho de Santiago numa das semanas mais quentes do ano.

Chego ao albergue pouco depois das seis da tarde. Devota fiel da cordialidade brasileira, informo aos mais próximos do meu beliche que vou ao supermercado e pergunto se alguém gostaria de alguma coisa. Um homem, residente há 10 anos em Barcelona, pergunta se eu poderia comprar iogurte. Volto com a encomenda, e conversamos até cair no sono.

O Porrino — Redondela — Pontevedra, 1 de setembro. É muito difícil se perder durante o caminho de Santiago. Por englobar áreas quase labirínticas, a concha de vieira, símbolo de peregrinação, indica a direção do caminho a cada 10 metros (ou até menos). Uma vantagem em caminhar acompanhado é a alteração na percepção do tempo. Aliás, isso também pode evitar acidentes ou a constante recordação do peso da mochila.

Seu apelido era Machu Picchu. Mas ele era colombiano e trabalhava em Barcelona como publicitário. Ingredientes da massa do pão de queijo, Farcs, governo Dilma Rousseff, música folclórica colombiana. Nossa conversa transitava como a paisagem. Trilhas de terra, igrejas medievais, asfalto, pontes medievais. Até que passamos por um vilarejo de sobrados, cada qual com sua área verde de parreiras. “Siempre quise una casa grande. Pero mi mujer decía:¿quién limpiará todo eso?”. Uma hora antes, ele me contou que fazia o Caminho para agradecer, “han surgido clientes importantes en Barcelona”. Meia hora antes, ele tinha confessado que realizava o Caminho para esquecer o fim do casamento. Mudou-se para a capital catalã por causa da ex-esposa. Em silêncio, analiso mais uma concha de vieira. Ao contrário do Caminho e do trânsito, a vida não tem sinalização.

Machu Picchu tem problemas no joelho. Sigo o trajeto Redondela-Pontevedra com outro acompanhante: damascos secos. O período da tarde se dirige em novas referências audiovisuais. Sinto uma forte câimbra na coxa esquerda. Descanso e suponho que faço uma boa série de alongamentos. Volto a caminhar. Água, suor e damasco. A dor se intensifica por toda a coxa esquerda, e começo a mancar. Percebo pistas de clássico cinematográfico. Sinto raiva, sento no chão e espremo minha garrafinha de água dizendo: “eu nunca mais farei o Caminho de Santiago”. Scarlett O´Hara se esvanece quando vem à memória Dr. Gregory House. Num dos 177 episódios, ele se machuca de propósito para que o cérebro interprete outra zona de dor, amenizando assim o padecimento crônico da perna. Procuro um ponto no meu braço esquerdo que sempre me provocava agonia quando fazia shiatsu. O identifico, o aperto sem parar e reassumo minha peregrinação.

Acredito em levitação após atravessar as portas do albergue de Pontevedra. As dores adquiridas e camufladas reaparecem drasticamente. A voluntária do albergue, uma velhinha simpática de uns 70 anos, queria me explicar toda a disposição física da hospedagem. “Hoy caminé más de 30 Km. ¡Poco importa donde estará mi cama! Solo quiero ducharme.” Respondo de maneira cortante ao mesmo tempo em que já sinto vergonha. Tomo meu banho gelado. Primeiro vem à tona as lágrimas atrasadas daquela tarde. Com prontidão, as atrasadíssimas igualmente se apresentam.

Pontevedra-Briallos, 2 de setembro. Acordo o mais tarde possível, faltando meia hora para deixar o albergue. Todos devem sair até às 8 da manhã. Não sinto dores, mas ainda manco. No café da manhã da hospedagem, um jovem português questiona meu estado físico. Ele é massagista e minha segunda providência divina. Pede para que eu sente e tire o tênis. Enquanto avalia minha perna, ele dispara: “o Caminho é o desapego”.

Almoço num pequeno restaurante. Minha mochila parecia mais de arqueóloga das escavações de Tutancâmon do que de uma peregrina. Vejo no jornal que fazia 32 graus e carrego um “equipamento” para cinco dias intensos de frio e chuva. Apareço no caixa do restaurante com o dinheiro da conta e uma sacola de roupas.

O pior itinerário é o vespertino. Como prosseguir após um ano bem-aventurado em sestas galego-espanholas? Não quero repetir momentos de levitação, muito menos lapsos de agressividade. Prudente, decido dormir na hospedagem de Briallos, em vez de seguir mais 6 km até Caldas de Reis.

Ao limpar algumas peças de roupa na lavanderia, ouço uma mulher perto dos varais. Na verdade, segurando o fôlego, ela falava apressada no celular. Do seu discurso, só entendi as palavras niños e cabrón (= cafajeste). Reencontro a mesma mulher no refeitório. Eu, sentada no canto esquerdo da sala. Ela, na mesa próxima à pia, acompanhada por — ou pelo que parecia ser — duas irmãs e um casal de amigos. Sua voz desafina, e ela começa a chorar. As lágrimas são mosquitos. Incomodam e são bruscamente limpas. Nenhuma lágrima realiza o trajeto do rosto. Uma irmã consola, o amigo segura sua mão. Era perceptível que todos estavam ali por causa daquela mulher. Todos faziam o Caminho para apoiá-la. Como cavalheiros medievais.

Subo as escadas do albergue de Briallos com as perguntas que importam. Quem foi meu Sancho Pança? Por quem eu seria Sancho Pança?

Briallos — Caldas de Reis — Padrón, 3 de setembro. De manhã, esquematizo o projeto do livro Água, suor e damasco. Será um best-seller hipster-universitário ao estilo Comer, rezar, amar. Chegando a Caldas de Reis, traço o meu fabuloso destino: o livro constará na lista dos mais vendidos da Veja e venderei os direitos autorais para O2 Filmes. Com o dinheiro, faria o doutorado com tranquilidade, ajudaria nos projetos dos meus amigos, daria uma viagem para a Indonésia aos meus pais… ¡Flipante pichón! (flipante = pode significar desde “incrível” até “delirante”, sentido positivo ou negativo; pichón = interpreto como o mais próximo na língua espanhola para “cara”).

Ilusões à parte, o presente retorna como uma comédia de Molière. Conheço um italiano em algum trecho entre Caldas de Reis e Padrón. Ao invejar um gato dormindo num jardim de parreiras, comento com meu conhecido que, na minha opinião, um dos assuntos mais insuportáveis em território europeu são os vinhos, seguidos de teses não confiáveis sobre queijos e chocolates. Sou a favor de Dionísio, das artes cênicas e aprecio um bom vinho. Mas realmente não tenho interesse em discutir as diferenças entre um Godello ou um Albariño.

“O que estuda em seu doutorado?”, pergunto, para passar o tempo. “Pedantismo, técnicas avançadas”, Marcello responde em tom dramático. Ele era de Nápoles, formado em engenharia agrícola. Por supuesto, ele fazia doutorado sobre vinhos! Ruborizo. Terceira providência divina: ele começou a rir, ele não parava de rir.

Para amenizar o constrangimento, faço a clássica pergunta: por que os melhores vinhos são os mais velhos? Sem presunção, ele resume: “Todo vinho tem defeito. Mas com o tempo, os elementos vão se fundindo. Formam uma unidade. O defeito se equilibra com as qualidades”. Uma definição para maturidade?

À noite, arquiteto um novo projeto: o best-seller O enólogo — o segredo do alquimista. Aqui entre nós, quem compraria um livro chamado Água, suor e damasco? Parece o slogan de alguma dieta. Mas você não disfarça a leitura de uma obra chamada O enólogo. Há um carisma desde o título. Estará na lista dos mais vendidos do New York Times, venderei os direitos para Hollywood… ¡Flipante pichón!

Padrón-Santiago de Compostela, 4 de setembro. Não houve transcendência. Mas também não foi um momento indiferente. La Coruña se encontra a 45 minutos de trem de Santiago de Compostela. Eu já conhecia o fim da história. Ao menos, o ícone arquitetônico do final.

Chego por volta das três da tarde. Sigo o protocolo peregrino: entro na catedral, agradeço e abraço a estatua do apóstolo Santiago. Busco meu certificado e descubro meu nome em latim. Volto para a praça tumultuada por peregrinos espreguiçados no chão. Encontro meu metro quadrado e faça o mesmo. Quando sintonizava os primeiros sinais de sesta, sinto uma mão mexendo meu ombro. Marcello senta do meu lado segurando uma lata de cerveja. Ele avisa que havia chegado por volta das dez horas da manhã. Como ainda não conseguia descrever o final da experiência, o questiono: “¿qué ha aprendido del Camino?” Em tom quase professoral, ele afirma: “Creer es fácil. Esperar creyendo que es difícil”. Repito a última frase imitando o acento italiano de Marcello: “Humm… ¡Esperar creyendo!” Sem perceber, havia escolhido um ângulo de visão na praça que mais privilegiava o céu do que a catedral. O click acontece. Verbo infinitivo com verbo gerúndio. Faça sol, chuva ou trovões. Esperar em todas as ações verbais do céu. Ma(i)s creyendo como o movimento das nuvens.

La Coruña, 5 de setembro — “As próximas contas não serão em euro”. Sinto certo alívio ao encerrar a conta no Banco Nova Galícia. Se já existe alguma alegria ao reencontrar um velho conhecido pelas ruas de nossa cidade, tudo fica mais tolo em terra estrangeira. Nosso mecanismo emocional é frágil: festeja e mendiga, festeja e se angustia. O revejo numa das esquinas da rua San Andrés. “Fernandooo”, aceno como uma criança. Ele era o meu meteorologista favorito e o porteiro do meu primeiro prédio galego. “¡Seguro que hoy irá llover!”, “¿Guapa, dónde está el paraguas?” Enquanto conversávamos mais uma vez sobre o clima, relembro suas frases quase paternais. A despedida foi um abraço contido e carinhoso, tão previsível como as chuvas de La Coruña.

Revezamento quatro por cem. A tarde é compassada por quatro cochilos e cem coisas para apenas duas malas. Durmo com a pergunta: onde estava com a cabeça quando comprei uma impressora? O mecanismo racional-logístico simplesmente desativa em terra estrangeira.

La Coruña, 6 de setembro — Em 2012, quando faltavam menos de 10 dias para embarcar à Galícia, apareci nervosa no Consulado Espanhol de São Paulo. Meu nome não constava na lista de vistos aprovados. Um senhor de olhos azuis me tranquiliza: “está aquí”. Ao abrir o passaporte, eis que observo o visto de uma garota loira com sobrenome Piñon estampado no meu documento. Não havia qualquer semelhança física ou astrológica entre nós. Logo abaixo, se encontrava meu visto correto. Rindo sozinha a caminho do metrô, telefono para os meus pais. “Tranquilos! A Espanha me aceita. Desde que eu seja outra pessoa”. De alguma maneira, esse erro consular — que me reservou uma boa piada sobre a burocracia espanhola — traduz também minha experiência.

O que está por trás das 2500 fotos de viagem? Do engessado discurso “entrar em contato com outra cultura”? Ou daquela história de “aprender outro idioma” e finalmente preencher o tópico “experiência internacional” no currículo? O fascínio e o perigo em se relacionar com outra cultura é que nos descobrimos pelo outro. Os gestos, os hábitos, o idioma. Os contrastes. Tudo isso nos faz cartografar territórios até então desconhecidos sobre nós mesmos. De repente, o outro se carimba em nossa memória. E talvez a crise em voltar esteja nessa reconciliação dos territórios: quais descobertas serão legitimadas daqui em diante?

E para que negar? No último dia, comprei leques tenebrosos, 20 barras de chocolate suíço e constatei a inflação do chaveiro espanhol made in china. Despedi-me em câmera lenta dos meus lugares preferidos, improvisei uma festa e segurei as lágrimas dançando no bar Lautrec.

(Foto Arquivo Pessoal)
ARQUIVO PESSOAL

Aeroporto de Barajas — Aeroporto de Guarulhos, 7 de setembro — Saindo do avião, uma mulher me cutuca: “você deixou cair isso no chão”. Ela entrega meu marca página. Não era mais suelo. Agora era chão, somente chão. No meu primeiro mês em território espanhol, sentia falta das palavras terminadas em ão. Uma vez tentei explicar para uma amiga da Califórnia o que era esse som tão exclusivo do português. “É como você morder uma fruta. Mas ai você não solta, fica preso entre os dentes.”

Chão. Feijão. Coração. Percussão. Orelhão. Caminhão… Na fila da alfândega, nino com carinho todas as palavras terminadas em ão.

Uso concomitante de outras substâncias — Os testes toxicológicos sugerem que o tratamento antialérgico possui melhor eficácia se acompanhado de trilha sonora. Algumas sugestões: Ça plane pour moi — Plastic Bertrand, Feo, fuerte y formal — Loquillo e Pachinko — Tokyo Panorama Mambo Boys. Por sinal, a indústria farmacêutica-fonográfica suspeita que Pachinko seja a nova Macarena!

Reações adversas — Mesmo quando administrado conforme a indicação, este produto pode causar intolerância a tênis, calça legging e damasco. Por tempo indeterminado.

MICHELLE BRAZ é produtora cultural e jornalista. Mas também aceitaria o convite de uma editora (ou vinícola) para escrever O enólogo.

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