O BRANCO DOS SEUS OLHOS É NEGRO

O paulistano Welton Silva, um dos pioneiros no eyeball tattooing no Brasil, conta por que quis pintar de preto o globo ocular

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por Carolina Cunha, em São Paulo

Welton Silva, 30 anos, já está acostumado a chamar atenção quando sai na rua. O paulistano tem os braços e pescoço tatuados, os lóbulos das orelhas com grandes discos, dois alargadores nas narinas, dois no queixo e oito piercings no corpo. Mas são seus olhos que atraem os mais desconfiados olhares. Seus olhos castanhos escuros já não têm mais os fundos brancos. Estão negros.

O paulistano foi um dos primeiros no Brasil a fazer o procedimento de eyeball tattooing, a chamada tatuagem definitiva no globo ocular. Essa prática de pigmentação é antiga na medicina, mas foi em 2007 que o americano Luna Cobra criou a técnica para a modificação corporal. O procedimento é perigoso e deve ser feito com uma tinta especial e atóxica. Os riscos incluem vazamento da substância para o corpo e cegueira.

Welton Silva, um dos pioneiros no eyeball tattooing | Foto: Hugo Fagundes

Foi em outubro de 2012 que Welton realizou a antiga vontade. Há meses ele estava ansioso para fazer o experimento até então inédito no Brasil. A oportunidade surgiu quando o venezuelano Emilio González visitou São Paulo para uma convenção de tatuagem. Com mais de 16 anos no ramo, o latino é um superstar da modificação extrema do corpo e ganhou fama depois de aparecer no programa Tabu, do canal de TV National Geographic. Entre seus trabalhos estão celebridades como a Mulher Vampira e o colombiano Caim, que se parece com o diabo.

Welton e dois amigos acertaram com González que a sessão aconteceria à noite, num quarto de hotel em Guarulhos, onde o venezuelano estava hospedado. No dia, alguém até brincou se eles levariam uma bengala para o caso de saírem cegos. Sentado numa cadeira, Welton recebeu as aplicações de tinta com uma seringa sem anestesia. Primeiro se faz um furinho e depois o líquido se espalha.

No mesmo dia, outro brasileiro, Jeferson Saaint, também faria a eyeball tattoing, sendo reconhecido como o primeiro no país a realizar o procedimento. Muitos da comunidade da modificação corporal consideraram a experiência arriscada, já que ele foi “uma cobaia” de um brasileiro autodidata. Já a Welton e seus amigos coube o título de serem os primeiros a fazer o processo com um artista estrangeiro.

Quando Welton acordou no dia seguinte e se olhou no espelho, ele tomou um susto. Não foi a irritação, a dor de cabeça ou a sensibilidade a luzes fortes que chamou sua atenção. Welton chorava lágrimas negras. A tinta desceu pelo canal lacrimal e vazou para outros locais do corpo. Debaixo dos olhos, a carne absorveu o pigmento e deixou uma mancha preta semelhante a uma olheira.

-É como se fosse uma maquiagem borrada pra sempre. Eu já penso que tudo que eu faço não tem volta, não tem arrependimento. Só me arrependo do que eu não fiz ainda.

Welton mora sozinho num conjunto da Cohab em Itaquera, zona leste, periferia de São Paulo. Desde os 17 anos ele pega pesado no batente como torneiro mecânico numa metalúrgica na região. Ganha dois salários mínimos e complementa a renda com trabalhos artesanais que vende pela internet.

O metalúrgico aproveita o torno para criar pequenas peças de plástico PTFE para serem usadas como implantes subdermais, feitos com corte e inseridos debaixo da pele. Quando a derme desinflama, a peça, usada como adorno, “gruda” e fica em alto relevo. Welton molda o objeto na forma e medida que o cliente deseja: coroa, coração, caveira, estrela. Os mais comuns são os circulares, pequenas bolinhas com em média 20 milímetros de diâmetro. Ele próprio já teve implantes nos seus braços. Foi obrigado a retirar, depois de cair do skate.

- Quando a gente faz uma modificação e dá algum problema, isso dói mais do que colocar. A sensação de perda é grande, diz.

Das modificações que já fez em seu próprio corpo, a que Welton mais gosta é um discreto Labret nos lábios, um dos primeiros que colocou. O que causa arrepios para ele são os sete piercings microdermais na testa. Estes foram feitos na última Tattoo Week de São Paulo e, segundo ele, o resultado ficou desastroso, está como “a Jade da novela das oito”.

- Um amigo ia participar de um concurso de piercing exótico. Aí ele não conseguiria mais ir e me perguntou: ’não tem como você ir no meu lugar?’ Aí fui lá e quebrei o galho né, relembra ele.

Das tatuagens que Welton coleciona, nenhuma é fofinha. Seu pescoço e braços ostentam várias caveiras. As mais polêmicas são uma que traz o retrato de uma mulher que foi morta esfaqueada (ele viu a imagem na internet) e um personagem de Walt Disney enforcado por um polvo.

-A imagem me atraiu. É como se fosse uma arte. Não é homenagem nem nada. Queria fazer uma coisa pra mim, não gosto de mostrar. Eu tinha uma namorada na época e ela falou que se eu fizesse a tatuagem da garota assassinada, ela iria terminar comigo. Ninguém apoiou. Nem o tatuador achou legal. As pessoas acharam falta de respeito.

O primeiro piercing de Welton foi aos 15 anos, furado por ele mesmo. Desde então se apaixonou pela modificação corporal. Arrumou um emprego como recepcionista num estúdio de tatuagem e começou a se envolver neste mundo. Hoje, seus amigos mais próximos são dessa comunidade. Há os que têm um chifre implantado, tatuagem no rosto, outro que suspende o corpo com ganchos…

Cada uma de suas modificações tem dores de graus diferentes. Mas ele garante que a tatuagem do olho não foi a pior.

- A língua é mais foda, mano. E olha que eu cortei quatro centímetros.

Welton coloca a língua pra fora. Ela está dividida ao meio e lembra um lagarto. Seu maior incômodo é um leve “estalo” que atrapalha a sua dicção para falar.

- As pessoas dizem assim: ‘você faz isso porque não gosta do seu corpo!’ Aí eu falo: não. Faço isso porque me sinto bem. É uma evolução e uma arte que a gente cria. Sabe quando você faz uma coisa pra ficar bonito? A gente faz uma coisa meio que inverso, mas a gente se sente bonito também. Não faço para ficar feio. Tem coisas exageradas, mas procuro fazer coisas leves.

Apesar de já ter visto de tudo, Welton também se choca com algumas modificações que vê.

- Tem pessoas que fazem perfurações que abusam do corpo, que atravessam a pele e quebram o osso. Sim. Isso me choca! Tem um cara que fez um piercing que lembra a crucificação de Jesus. Imagine! Pra você ter uma hemorragia interna, pegar uma veia, nervo, é muito fácil, comenta ele.

Na rua, as reações ao seu visual são diversas. A maioria tem uma simples curiosidade, mas há também os que o xingam. Ele diz que os que mais o discriminam são os religiosos. Já foi chamado de monstro, diabo e jogaram praga para ele ir para o inferno. Violência física nunca sofreu. “As pessoas tem medo de mim”, brinca ele, que vem de uma família muito religiosa e acredita em Deus. Seus pais são testemunhas de Jeová e nunca proibiram suas escolhas.

-Quando eu falei que ia pintar os olhos meu pai disse: ‘vai virar EMO, né?’ Ele achava que eu ia fazer uma maquiagem definitiva. Ele não sabia que existia essa tatuagem. Minha mãe já falou: se você ficar cego, eu não vou cuidar de você. Ela é bem realista.

O tatuador Emilio Gonzalez e Welton Silva. O colombiano foi responsável por pintar de preto o globo ocular de Welton | Arquivo Pessoal

Em 2013, Welton decidiu fazer uma segunda aplicação nos olhos para corrigir falhas brancas. Dessa vez, o processo foi mais complicado. Dias depois, com muita dor e sem enxergar, ele foi parar no hospital CEMA, na zona leste da capital, uma referência em oftalmologia. A sensação era de que havia uma pedra em sua pupila. Ao entrar no consultório, o médico fitou o rapaz com espanto, pegou o celular e ligou para um colega.

- Meu, tô com um maluco daqueles da TV aqui. Ele tá fodido, comentou o doutor, sem disfarçar.

O médico nunca tinha visto um caso igual e identificou um princípio de glaucoma. Depois, os exames diagnosticaram uma séria infecção. Seu caso foi estudado pelos médicos, ele também recebeu convite de faculdades para participar de pesquisas sobre os efeitos no longo prazo.

Apesar de nunca ter cursado uma faculdade, Welton fala do corpo como quem estudou anatomia. Cita com facilidade os nomes de camadas da pele, dos nervos e músculos. Cada uma das modificações do seu corpo, além de um pouco de dor, trouxeram esse conhecimento.

Ele lembra que no começo, na década de 1990, os modificadores faziam os processos primeiro em si mesmos e, depois de um tempo, estudavam os problemas que eles poderiam causar. Hoje já existem diversos cursos de modificação corporal buscando reduzir os riscos.

- A gente procura ver o histórico da pessoa para saber se ela trabalha, se é estável, porque a gente faz uma modificação na pessoa, e aí depois no trabalho dela, como fica? E o amanhã? A gente procura ver o lado psicológico. Não pegamos qualquer um para fazer um trabalho e depois se arrepender. Esperamos que a pessoa não volte atrás e tenha certeza do que quer.

Welton é muito crítico com a prática da transformação corporal. Para ele existem por aí muitos “açougueiros” inexperientes. Cita casos de adolescentes que colocam alargadores e dilaceram suas orelhas, gente que assiste a um vídeo na internet e tenta fazer em casa. Também já ouviu falar de tatuador que foi preso por tatuar menor de idade (a pena é de até seis anos de prisão). Mesmo assim, reconhece que a maioria dos casos na dá em nada. Ele mesmo quer fazer faculdade de enfermagem para ter mais conhecimento e realizar as modificações com segurança total. Seu sonho é abrir o negócio próprio.

-Quem sabe eu não viro um profissional da medicina ilegal?, brinca ele.

“Quando você vai parar?”. Essa foi a pergunta que a filha de 10 anos de Welton fez ao pai quando reparou que ele agora era dono de um olhar negro. Ele diz que a menina não liga para a sua aparência alternativa, só não gosta dos piercings e tatuagens.

- Ela me disse que sou o herói dela, conta ele orgulhoso.

Os dois não dividem a mesma casa. Ela mora com mãe, mas os dois se veem semanalmente, e ele gosta de acompanhar de perto a educação da filha, inclusive indo às reuniões da escola. Sobre tatuagem e piercing, ele diz que só vai permitir quando ela for maior de idade, para que nada a atrapalhe profissionalmente.

Retomo então a pergunta feita pela filha de Welton, e questiono se ele pensa em parar com as modificações.

- Olha, eu acho que só posso parar quando estiver satisfeito. Eu meio que estacionei depois dos últimos procedimentos e penso só em ficar na tatoo mesmo, diz ele.

obre os microdermais, Welton resolveu tirá-los e, em seu lugar, ele agora ostenta cicatrizes em forma de mandala, feita em uma dolorosa sessão de escarificação da pele com a gilete. O look Jade já era.

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