O NOME DELE É FRED

O poeta Fred Barbosa reúne 35 anos de poesia no livro Na Lata (1978–2013), uma boa desculpa para recuperar algumas velhas e boas histórias

Clichetes
clichetes

--

por Maria Fernanda Moraes

Fred adolescente, na Grécia (Foto: Arquivo Pessoal)
FRED ADOLESCENTE, NA GRÉCIA | ARQUIVO PESSOAL

Q uem passa despercebido pela calçada larga da Avenida Paulista, ali mais ou menos entre os metrôs Brigadeiro e Paraíso quase na praça Oswaldo Cruz, pode não imaginar o que um dos últimos casarões da região abriga.

Os portões antigos ciceroneados por duas pilastras rebuscadas já são um prenúncio da resistência e a placa marrom da prefeitura que caracteriza ali um dos espaços culturais da cidade já se torna quase uma redundância quando os olhos ultrapassam as grades e conseguem alcançar o jardim florido que rodeia o casarão. Não há dúvidas: ali é mesmo a Casa das Rosas.

Desde 2004, o lugar ganhou uma espécie de aposto: passou a ser Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, o que faz com que a surpresa dos visitantes desavisados possa aumentar ainda mais. É que além das exposições gratuitas, mostras e saraus que acontecem ali, o casarão ainda guarda o acervo de um dos grandes poetas brasileiros, marco da poesia concreta, Haroldo de Campos.

O responsável pela revitalização do espaço é o também poeta Frederico Barbosa, que luta e se orgulha em preservar e difundir a obra dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto de Campos). Para os mais oníricos, aqui poderia muito bem começar uma daquelas histórias de predestinação, com direito a um roteiro cheio de voltas e coincidências. Mas o pragmatismo de Frederico lembra que não, que são apenas conquistas de um cara que queria — e trabalhou — muito por isso.

Entretanto, no meio desse caminho, algumas sincronicidades são representativas demais para serem justificadas. Assim que assumiu a direção da Casa, Frederico conta que foi até a biblioteca de Haroldo, na parte inferior do casarão, e começou a olhar os livros. Achou entre os volumes o seu livro Nada Feito Nada, que tinha sido publicado em 1993 na Coleção Signos, organizada por Haroldo. Na primeira página, a dedicatória:

Para Carmem e para Haroldo,

como agradecer?

Só dedicando a minha vida toda”.

Quando viu aquilo, pensou ‘é… que engraçado, estou aqui mesmo, fazendo exatamente isso que prometi’.

Fred ainda bebê (Foto: Arquivo Pessoal)
FRED AINDA BEBÊ | ARQUIVO PESSOAL

O Frederico dele veio do García Lorca. A mãe o queria astronauta, deslumbrada pelas histórias mágicas vindas do espaço que encantavam os ouvidos em 1961, ano do seu nascimento. O pai já predestinava: iria ser escritor, afinal, até tinha roubado a caneta de uma enfermeira na maternidade.

Não deu outra, virou poeta. E antes disso, era dançarino. E antes, professor de Literatura. Mas na gênese de tudo, está o segredo: ele é o Fred. Assim, desse jeito mesmo, Fred, acessível, curto tipo apelido daquele amigo de anos, parceiro de data, com esse fonema aberto como os braços de um abraço que vem recepcionar a gente antes mesmo da poesia chegar ao coração. Fred é o melhor dos adjetivos pra se definir esse poeta. Por trás dos óculos retangulares e olhos miúdos, do cabelo grisalho penteado para o lado, escondido entre o paletó e a calça jeans que tentam desviar a formalidade, está lá, essa não-identidade essencial para o poeta.

Pernambucano, veio com a família logo cedo para São Paulo. Na bagagem, os aprendizados dos pais com o mestre Paulo Freire, quando moravam em Recife. A mãe era professora e educadora, o pai dava aulas na USP e fazia crítica literária. A rua Monte Alegre, em Perdizes, onde cresceu, se tornaria sua incubadora literária: além da influência dos pais, foi lá que conheceu Haroldo e Augusto, seus vizinhos e amigos próximos do pai.

Na adolescência começou a dançar e se apaixonou pela dança contemporânea. Odiava o ballet clássico com toda a radicalidade que conseguia e que ainda lhe tateia nos dias de hoje. Depois, durante uma vivência nos Estados Unidos para estudar dança, também aprendeu mímica.

Os poemas começaram no ginásio. Lembra-se da professora que sorteava um nome entre os alunos para escrever um poema e lê-lo. “A brincadeira da sala era que o sorteio dela era viciado, ela sempre tirava meu nome. E eu adorava”.

Gostava de ler prosa, conta, mas começou escrevendo poesia na escola e continuou. Quando leu o poema do João de Cabral de Melo Neto sobre o Ademir da Guia, se apaixonou. “Eu era fanático pelo Palmeiras. Li aquilo com meu pai e fiquei louco. Até que um dia a poesia explodiu na arquibancada”.

Foi nesse período também que se apaixonou pela poesia concreta e escrevia tentando imitar Haroldo e Augusto. Prestou vestibular pra Física e fez três anos. Saiu e foi fazer Letras. Quando entrou na faculdade, também se tornou professor em colégio e cursinho.

- Tive contato com a poesia concreta à medida que ela ia acontecendo. Quando o Caixa Preta, do Augusto de Campos, saiu em 1976, foi a época que eu comecei a gostar. Meu pai era muito amigo do Haroldo. Eu tinha essa facilidade. Mas dos poetas que mais me influenciaram na minha formação nem foram eles. Porque eu tinha um pouco de medo deles, sabe? Tinha uma certa distância. O Haroldo era mais próximo, mas o Augusto, que pra mim é o maior poeta do mundo, eu só comecei a me relacionar quando tinha uns 30 anos. Eu pensava: que que eu vou falar pra esse cara? Quando eu tive coragem de me aproximar, eu já tinha meu primeiro livro escrito e mostrei pra ele… mas era uma admiração tão grande que eu não sabia direito o que eu ia falar”.

O café gerenciado por um simpático italiano nos fundos da Casa das Rosas (no prédio em que antes funcionava a garagem do casarão) se insinua, à primeira vista, como o refúgio da rotina aturdida de Fred. Mero engano. Basta se aproximar do local que os amigos já acenam, ele cumprimenta-os carinhosamente, conversa com as atendentes, encontra um ou outro conhecido que está por ali. Durante os encontros para as entrevistas, testemunhei dois momentos diferentes do ritmo frenético do dia-a-dia do poeta, que acabou de ser modificada por dois motivos mais do que especiais: o nascimento das filhas gêmeas Pietra e Joana.

Fred Barbosa, hoje (Foto: Arquivo Pessoal)
FRED BARBOSA, HOJE | ARQUIVO PESSOAL

A chegada antecipada das filhas mudou seus planos, que sairia de férias quando eles nascessem. Como permaneceram no hospital por uns dias por causa da prematuridade, o pai dividia sua rotina entre as tarefas de administração da Casa e as visitas diárias às meninas no hospital ali próximo à Paulista. E seguiu assim, incansável.

Já com as filhas em casa, foi a vez de fazer o acerto da rotina do casal: como ele é mais noturno e tem dificuldades pra dormir, optou pelo turno da madrugada. A esposa, por sua vez, assumiu o turno diurno. E vem funcionando. Ele é responsável pelas mamadas da noite, cuida, balança, conversa e claro, fotografa as meninas, como todo pai babão de primeira viagem.

Durante a gravidez da esposa, foi desses pais que leem muito e, agora, com a convivência com as meninas, é mais levado pela intuição. Confessa que aprende muito com elas, começou a identificar as peculiaridades, ver as reações. “Começar a se relacionar com o mundo é uma coisa maluca”. Teme um pouco não poder acompanhá-las com tanto vigor com o avanço da idade, mas o entusiasmo com a nova experiência é tanto, que logo esquece e muda de assunto.

Com o tempo cronometrado, os nossos encontros para as entrevistas eram sempre na hora do almoço. E vira e mexe aparecia algum funcionário atrás de uma resolução ou ponderação do diretor. Depois de atendê-los atenciosamente, fazia questão de ressaltar a importância da equipe que trabalha com ele hoje.

Isso porque nem tudo foram flores nesse percurso de revitalização da Casa das Rosas. Quando assumiu o projeto, em 2004, o casarão estava praticamente abandonado. Vinha para a Casa até aos domingos, muitas vezes para limpar e organizar. Passou então a montar uma equipe e as pessoas trabalharam voluntariamente por seis meses, conta, “éramos um Exército Brancaleone”.

Do projeto inicial pensado por ele e colocado no papel para o que foi feito até agora, o poeta se orgulha do resultado. “A cidade não tinha algo assim agregando num mesmo espaço oficinas, mostras, exposições, saraus… enfim, era isso que eu queria: a poesia viva sendo mostrada para as pessoas”.

Além dessa dupla jornada, Fred também faz parte do Conselho Curador do Prêmio Jabuti, ministra palestras e participa de diversos eventos na cidade, como a Balada Literária, recentemente.

“Gosto de um ou outro poema, uma ou outra letra de música, mas, no geral, acho a obra de Vinícius de Moraes bem medíocre. O pior mal que fez à poesia brasileira, no entanto, advém de que sempre passou a falsa impressão de que poesia se faz na mesa do bar bebericando com os amigos, de forma espontânea e sentimentalóide (…)”.

(Foto: Arquivo Pessoal)
ARQUIVO PESSOAL

Fred é adepto das redes sociais e as usa, inclusive, para encontrar novos escritores e poetas por aí. Como a franqueza também é uma das suas melhores amigas, seu mural online não foge da raia. O trecho acima é de um post que publicou no Facebook na semana de comemorações do centenário do poetinha, em outubro. O resultado? Polêmica! Uma chuva de comentários — contra e a favor. Mas ele se explica, dizendo que o Vinicius passa essa falsa impressão de que o artista é um inspirado, coisa que é totalmente contra.

- E além disso, as pessoas se chocaram com a palavra medíocre. Se eu tivesse usado mediano, não teria toda essa repercussão.

Os não-gostares são significativos na sua personalidade. Ferreira Gullar e Pablo Neruda também se encaixam no quesito medíocres pra ele. Não poesia em si, não gosta de critérios e parâmetros românticos vagos, odeia termos como inspiração — “as pessoas acham que é algo divino e, na verdade, é trabalho” — , como dom — “acho execrável, não gosto nem de talento, acho que é uma coisa que se forma, que se cria”. Também refuta essa ideia de que o artista é especial.

- Não, o artista é um trabalhador. Pra se fazer arte precisa de técnica, mas na literatura isso não é bem aceito. Acham que o poeta já nasce assim, pronto. É um preconceito que eu luto contra.

Quando tinha 18 anos, levou seus poemas para o Haroldo de Campos ler e ele adorou, conta, disse que era a melhor coisa que tinha lido nos últimos anos. Aí ficou dois anos sem escrever, bloqueou.

A frequência e a disciplina também não são suas companheiras fiéis. Recentemente lançou a coletânea Na Lata, que traz todos os seus poemas já publicados, de 1978 a 2013, mas raramente tem escrito. De 1991 a 1998 o hiato foi maior. Começou a usar o computador e percebeu que a tecla delete não ajudava os escritores: apagava tudo o que escrevia. Teve que comprar um caderno e numerar as páginas para se policiar e não arrancá-las.

- Eu escrevo muito pouco. Queria ter essa disciplina pra sentar e escrever um romance. Já tentei varias vezes mas acabei escrevendo um poema. É angustiante não escrever o tanto que eu queria. Eu penso que poderia estar escrevendo ao invés de assistir série norte-americana na internet, coisa que eu faço muito.

Para tentar burlar o entrave, Fred busca estímulos para escrever, que chama de gatilhos. Como quando ficava ouvindo jazz e criava um poema pra cada música que gosta.

Rarefato, publicado em 1990, é seu livro preferido. Mas reconhece alguns amadurecimentos ao longo da carreira. Ele sempre achou que o que interessa na poesia não é o conteúdo, é a forma. Não muito sobre o que você está falando, mas como você está falando. E conseguiu apreender isso na prática, quando dava aula no cursinho à noite e apresentava seus livros.

- Eu percebia que os alunos não entendiam ou não se identificavam com o que aqueles poemas estavam dialogando. Foi aí que no meu livro Contracorrente, de 2000, já coloquei referências à vida cotidiana. Meus dois primeiros livros são muito mais herméticos que os outros, mais difíceis. Não quer dizer que eu tenha buscado fazer uma poesia fácil, não é isso. Mas eu me aproximei mais do meu leitor, de certa maneira.

Dividido entre versos, mamadeiras, programação cultural e toda burocracia que a direção de uma instituição exige, ele reconhece que sempre teve o sonho de viver de escrever. Hoje, tem esse privilégio de viver de poesia, mesmo que não seja estritamente escrevendo, mas também promovendo-a.

- Já me falaram que eu tenho o emprego mais invejado do país [pra quem trabalha na área de cultura]. E eu digo que tenho sim. Mas isso é hoje, dez anos depois de muito trabalho pela Casa.

A dívida com os irmãos Campos certamente já está paga.

--

--