PARA A ILHA TIMOR, A PROTEÇÃO E O ENCANTO DE ATAÚRO

A pequena ilha do longínquo e misterioso Timor-Leste guarda grandes histórias e experiências

Clichetes
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por Verônica Lima, em Ataúro, Timor-Leste

A ntes mesmo de ir morar no Timor-Leste, em 2012, eu já ouvia histórias intrigantes de encantadoras de Ataúro, uma ilha situada a 25 km ao norte da capital do país do sudeste asiático, Díli. A história mais intrigante era sobre a forma de cumprimento entre os moradores da ilha: um tapa no rosto. Impossível não achar, no mínimo, curioso. Surgia em mim a narrativa da ilha misteriosa que eu visitaria em julho daquele ano.

Não foram poucas as vezes que me dediquei a pensar com certo encantamento como seria a vida lá. A ilha fica “em frente” à Díli, e de forma imponente constitui uma espécie de “guarda” do litoral da mais importante cidade timorense, como se vigiasse as praias incrivelmente bonitas da capital. Na volta do trabalho como professora de Jornalismo da Universidade Nacional do Timor-Leste, pela avenida beira-mar, eu via Ataúro fitando as areias de Díli, num misto de proteção e enigma.

E o papel da ilha na história do país não é pequeno: foi uma ilha-prisão, para onde também eram levados alguns refugiados; e foi o local para onde “fugiram” os colonizadores portugueses quando a ameaça da invasão indonésia era iminente. Dizem até que Ataúro funcionaria como uma barreira contra possíveis tsunamis na costa norte timorense. A força da ilha não é apenas aparente, mas faz parte também do imaginário do povo.

Vivi em Timor entre os meses de fevereiro e novembro de 2012, e a expectativa de visitar Ataúro era uma das que mais se destacavam entre tantas outras ansiedades inerentes à mudança radical no “ano-do-fim-do-mundo”. Timor-Leste é um país quase desconhecido, infelizmente. Muitos pensam que ainda está em guerra, outros tantos pensam que fica na África. Mas Timor, um dos países mais jovens do mundo — tem apenas 11 anos de independência, está se reerguendo. Depois de quase 25 anos de uma massacrante ocupação indonésia, na qual um terço da população foi morta (cerca de 200 mil pessoas), hoje os desafios estão relacionados principalmente à pobreza, má distribuição de renda e a falta de infraestrutura.

E ilha de Ataúro, claro, compartilha esses problemas. A população é de cerca de 8 mil habitantes, mas há bem pouco de urbano por lá. As pessoas se distribuem em pequenos grupos de casas simples, em meio à natureza pouco modificada. E não é simples visitar a ilha: os 105 km² de área são compostos, basicamente, de uma faixa litorânea de belezas estonteantes, com direito a recifes de corais, e montanhas não muito altas, mas majestosas o suficiente para fazer da travessia dos 9 km de largura da ilha uma tarefa para esportistas radicais. Eu fiquei mesmo com o que a ilha oferece de melhor: sossego e descanso.

UM OUTRO TEMPO

A tão esperada travessia — feita em uma antiga embarcação relativamente grande chamada Nakroma, que dizem ser originária de uma doação da Alemanha a Timor, e que faz o trajeto apenas aos sábados — durou mais de duas horas. Inacreditável pela curta distância, mas sempre me alertaram: no Timor o tempo é outro.

A maior parte dos passageiros era de timorenses que iam visitar parentes e amigos, levar ou vender produtos, ou simplesmente passear. Mas custei a acreditar também que alguém fizesse o trajeto de volta no mesmo dia, já que o tempo de permanência do Nakroma na ilha era de apenas três horas! Sim, o tempo no Timor é outro.

Desembarcamos em um píer simples da principal vila da ilha, enquanto “quase tudo” era descarregado da embarcação: alimentos, animais e até carros e motos. A confusão ficava completa com o assédio dos “taxistas” locais: na verdade, pilotos de motos devidamente equipadas com uma pequena carroceria onde os passageiros se alocam em assentos improvisados — a descrição é fria e amedrontadora, por isso eu prefiro o nome afetivo desse meio de locomoção: o “tuc-tuc” local. No caminho, paisagens incríveis e uma brisa marítima agradabilíssima justificaram os sacolejos do meio de transporte improvisado: o melhor é mesmo sentir o clima do lugar locomovendo-se “à céu aberto”.

OS TURISTAS NO TUC-TUC
TIMORENSES NO TUC-TUC, VEÍCULO TRADICIONAL NO LOCAL

Fomos, eu e meus amigos, para a nossa simpática hospedaria, Manucoco, nome também do lugar mais alto da ilha. O local, que reservamos por telefone, surpreende: mesmo sem muita infraestrutura, como toda a ilha, é de uma simplicidade aconchegante e tranquila.

A água era retirada de um poço no próprio quintal, a energia elétrica funcionava apenas entre as 19 e 22 horas, e os pedidos para o jantar e o almoço tinham que ser feitos com boas horas de antecedência, para que as “manas” comprassem os produtos para preparar os pratos. Mas a ideia de “falta” das coisas não é apropriada: o que ficou não foi o banho frio ou o sono estranhamente antecipado, mas sim a comida simples e saborosa — e a certeza do carinho como ingrediente — e o silêncio terapêutico de uma noite iluminada só com as luzes naturais.

ATAÚRO PRA “MALAI” VER

Foto: Verônica Lima
BONECAS FEITAS EM ATAÚRO

Mas nem só de cenas bucólicas vive Ataúro. O artesanato local é famoso em todo o Timor-Leste e motivo de orgulho dos timorenses, principalmente moradores locais. As famosas bonecas locais já são um produto nacional, amplamente divulgado para estrangeiros como eu, ou “malais”, forma vulgar de fazer referência aos visitantes de outros países.

Além disso, a ilha tem se tornado um destino para os amantes do ecoturismo. Em Ataúro não é preciso fazer um curso de mergulho e se aventurar em grandes profundidades para ver fauna e flora subaquáticas incríveis e surpreendentes até para mergulhadores profissionais ou biólogos. Basta alugar um kit para mergulhos de superfície — snorkel e nadadeiras, o que geralmente já inclui a contratação de pescador que leva os turistas em pequenos barcos aos locais com melhor visibilidade. A agradável temperatura da água e a tranquilidade do mar ajudam e completam o cenário perfeito.

E tudo isso, sem gastar muito dinheiro. Paguei cerca de 10 dólares por um mergulho de pouco mais de uma hora, o suficiente para guardar uma das lembranças mais sublimes do mar do Timor. E a experiência ainda proporcionou um ótimo encontro: fizemos a locação do “pacote” na Pousada do Berry, um australiano divertido que aposta na sustentabilidade como estilo de vida.

Berry deixou seu país, casou com uma timorense, e decidiu buscar qualidade de vida num empreendimento sustentável: a pousada utiliza energia solar — o que é apropriadíssimo no Timor, onde o sol brilha o ano todo, as refeições são coletivas, e se aproveita água da chuva. Isso já faz do lugar o mais disputado para se hospedar: eu e meus amigos tentamos reservar, mas já não havia vagas.

UMA VIAGEM DENTRO DE OUTRAS

Mesmo aparentemente pequena em escala, a ilha de Ataúro é enorme em atrativos e possibilidades. E a conclusão foi que apenas um fim de semana não é suficiente para desvendar todos os encantamentos do lugar. É verdade que conseguimos conversar com alguns moradores locais, entre eles um moçambicano que chegou à ilha como refugiado. Sorrimos junto com as crianças, que se aproximavam com certo medo dos “malais”. E prometemos voltar.

Mas Ataúro foi mais uma das viagens dentro da grande viagem que Timor-Leste significou na vida de alguns brasileiros no ano de 2012. Os planos de voltar tiveram que ser abandonados em favor da intensidade da experiência, que inclui os desafios do trabalho, as novidades, os aprendizados, a identificação de uma nova rotina, e até novos sentimentos, novas formas de ver o mundo.

E Ataúro, com certeza, contribuiu para aumentar essa intensidade. A ilha encantada acompanhou, imponente, toda nossa história vivida e todas as reflexões feitas com os pés nas areias timorenses. E como não vi pessoas se cumprimentando com um tapa no rosto continuo curiosa e intrigada com as histórias de Ataúro. Tenho que voltar lá.

VERÔNICA LIMA é jornalista.

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