PEDALA, PRISCILLA

As pedaladas de Priscilla Stevaux, destaque do BMX nacional, para conquistar um lugar nas Olimpíadas

Clichetes
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por Andréia Martins e Carolina Cunha, em Sorocaba (SP)

fotos Carlos Ximenes

Priscilla durante treino na pista de BMX em Sorocaba, no interio de SP (Foto: Carlos Ximenes/Clichetes)
PRISCILLA TREINA NA PISTA DE BMX DE SOROCABA | CARLOS XIMENES

A bicicleta de número 93 desce a rampa e pega embalo quando os pneus tocam a terra. Arranca no solo acidentado, faz uma curva sinuosa à direita, outra à esquerda, salta uma ondulação e segue no ar, sem se desequilibrar. Priscilla Stevaux Carnaval domina com habilidade o circuito de bicicross do Centro Esportivo André Matiello, em Sorocaba (SP). Ela leva 38 segundos para completar o percurso de 300 metros. A meta é cruzar a pista no menor tempo possível. Quando termina, tira o capacete e uma longa cabeleira loira voa. Aos 20 anos, a atleta sorocabana é um dos destaques do Brasil no BMX, modalidade do ciclismo que nasceu na Europa na década de 1950 e se popularizou na ensolarada Califórnia (EUA), nos anos 1960.

Em solo brasileiro, o esporte — que combina com o clima tropical, embora o macacão usado não seja lá o melhor amigo do calor — tem um bom número de adeptos, mas ainda não alcançou a popularidade esperada, um pouco pela falta de divulgação, um pouco pela falta de pistas de BMX. A própria pista de Sorocaba, uma das poucas no país, foi aberta há 25 anos mais por uma questão familiar do que para incentivar o esporte. A cidade, chamada por alguns de “capital do BMX” também não oferece uma estrutura de apoio para seus atletas, mesmo tendo duas meninas no topo do ranking nacional. Fora dos padrões internacionais, pista não via uma reforma desde 2008, o que acabou sendo feito pelas mãos de quem pedala por lá, entre eles, Priscilla e o irmão, Douglas.

- Não dá para viver de esporte no Brasil. Só se você for jogador de futebol, diz a atleta ao receber o Clichetes em sua casa, em Sorocaba, no interior de São Paulo, numa sexta-feira dezembro, com a temperatura acima de 30 graus.

Na casa, que fica próxima à pista onde Priscilla treina diariamente, as dezenas de troféus acumulados dividem-se entre a estante da sala e a do quarto. É lá também que a bike, modelo aro 20 e menor que a bicicleta tradicional, fica estacionada. Ao olhar para o xodó, ela diz:

- Não tenho namorado, mas tenho o Phelps, referindo-se à a bike que batizou com o apelido do nadador Michael Phelps, um de seus ídolos.

No quarto rosa, perfumes e maquiagens ficam próximos a pôsteres de pilotos levantando poeira, como o atleta francês Damien Godet e o holandês Raymon van der Biezen, ícones do BMX. O criado-mudo exibe o troféu mais significativo para ela: o do Mundial disputado em Paulínia, no interior de São Paulo, em 2002, quando ela tinha 9 anos.

- Foi meu primeiro campeonato mundial. Comecei em 2001. Em 2002, já estava no mundial e conquistei o 3º lugar. Eu ainda não sabia a dimensão disso. Aí vi que que não era brincadeira, era o que queria pra minha vida.

Os pais de Priscilla podem até ter pensando que o interesse da filha pelo esporte seria apenas um hobby. Quando Douglas (seu irmão mais velho) quis desbravar a pista de BMX, ela não ficou intimidada e foi atrás dele. Foi paixão à primeira vista. Os dois começaram a se divertir assistindo fitas cassetes e vídeos pela internet para aprender as manobras. Muitas quedas, tropeços e torções depois, começaram a competir pra valer.

- Eu sempre fui meio doidinha. Cheguei a fazer capoeira e dois dias de balé, mas implorei para a minha mãe me tirar porque, meu Deus… Sempre fui muito agitada e gosto de uma coisa mais radical, diz ela numa fala acelerada.

A vaidade de Priscilla em seus 1,55m de altura podem não revelar que quando ela está pilotando sua bicicleta é teimosa, competitiva e tem prazer pelas pistas com rampas altas e corridas difíceis.

- A pista que eu mais gostei de andar é a mais perigosa, que é a da Holanda. Muitas pessoas acham muito perigosa, e é, mas eu achei legal o formato das rampas, a técnica dela, o salto que joga bastante alto. Gosto desse tipo de salto que te joga para cima e não para frente.

Na equipe da seleção brasileira desde 2010 — grupo que tem apenas ela e a também a sorocabana Bianca Quinalha, que hoje é a número 1 do ranking feminino, de meninas — , Priscilla também vem trilhando uma boa carreira. Participa de campeonatos panamericanos, estaduais, municipais e mundiais, mas quando não está com a seleção, o custo pesa.

Mesmo com a dedicação, 2013 não foi um ano fácil. Embora tenha obtido bons resultados — como chegar pela primeira vez às semifinais de uma etapa da Copa do Mundo de Supercross e fazer o 14º tempo na Copa do Mundo de Manchester, o melhor tempo de uma atleta brasileira na prova-, a perda de patrocínio individual e do treinador, já que não tinha como custear os treinos sozinha — feitos via computador com o francês Thomas Allier — , somado ao atraso da bolsa auxílio distribuída pelo Ministério do Esporte (até dezembro, quando a entrevista foi feita) levaram a atleta a não competir algumas provas. Sem pontuação suficiente, viu seu nome cair de 1º para 2º no ranking brasileiro.

O gosto de virar o ano em segundo desceu azedo. Perdeu o título para Bianca, com quem protagoniza boas disputas. Mas ela já está trabalhando para reverter a situação, de olho na preparação para as Olimpíadas de 2016, com sede no Rio de Janeiro, onde até agora o país tem apenas uma vaga garantida.

A primeira decisão foi trancar a faculdade de arquitetura, que ela começou a cursar em 2013, para se dedicar totalmente aos treinos. Para competir no Rio, ela precisa de bons resultados nas competições individuais e com a seleção brasileira (agora sob o comando de Guilherme Pussieldi e com patrocínio da Caixa), já que cada uma oferece pontuação para as atletas e interfere no número de vagas que o país terá disponível e no sobe e desce do ranking.

- É uma atleta por país [na Olimpíada]. Dá para conseguir até três vagas, como os EUA, por exemplo. Temos uma porque somos país sede. Mas na hora de escolher a atleta, não é a posição do ranking que define, mas sim quem está melhor naquele momento.

Um dos entraves para a preparação dos atletas brasileiros nas competições internacionais são as pistas “desatualizadas”. O Brasil ainda não tem uma com os parâmetros olímpicos do Supercross, o que deve mudar este ano, quando a pista que está sendo construída em Londrina (PR) ficar pronta.

- Escuto as atletas dizendo que não sabem como a gente consegue treinar em pistas baixas [aqui no Brasil] e ainda alcançar resultado. Eu disputo com campeãs olímpicas e mundiais, então o nível é bem alto, mas a estrutura deles é outra. O Brasil chega com mais garra do que treinamento. Já não fico pensando muito nisso, senão, não desço a rampa.

Por seis meses, Priscilla viveu o gostinho de treinar no primeiro escalão do BMX quando passou a temporada de 2011 no Centro de Treinamento da Suíça, com patrocínio da Confederação Brasileira. A proximidade com atletas internacionais rendeu novas expectativas para ela, que chegou a treinar na pista teste das Olimpíadas de Londres, em 2011. A vontade de crescer nas competições de fora também pesou na hora da atleta trocar a equipe de Sorocaba pelo Penks, de Barueri, seu atual time.

- A equipe me deu muito apoio. Saí do Clube Sorocabano porque eles estão querendo crescer no Brasil, e eu já estou numa fase de querer crescer mais lá fora. Aqui a gente briga entre duas e chega lá fora, são 50 adversárias. Por exemplo, a Mariana Pajón [atleta colombiana, uma das melhores do mundo do BMX] não tem quem pegue ela lá na Colômbia. Mas se ela ficar lá treinando sozinha, vai perder. Então ela está em todas as competições.

A convivência com adversárias, as muitas viagens no Brasil para disputar competições, as incertezas e obstáculos do esporte fizeram Priscilla prestar mais atenção no lado emocional. Sua preparação hoje conta com a ajuda de um hipnocoach Rogério Castilho, a quem ela visita uma vez por semana em São Paulo.

- O psicológico conta muito, principalmente na relação com as adversárias, e ajuda a ganhar.

Prscilla manobrando na pista (Foto: Carlos Ximenes/Clichetes)
PRISCILLA DURANTE MANOBRAS NA PISTA | CARLOS XIMENES

UM POUCO DE HISTÓRIA

A sigla BMX significa: bicycle (B) moto (M) cross (X) e divide-se em duas modalidades: corrida (race) e o freestyle (estilo livre). O bicicross surgiu no final dos anos 1950 na Europa e se popularizou como brincadeira de criança,na Califórnia, nos anos 1960. As crianças imitavam os ídolos do motocross com suas pequenas bicicletas em pistas improvisadas. Nos anos de 1970, esse novo esporte cresceu e surgiram equipes, campeonatos, revistas especializadas, marcas novas de peças e de bicicletas BMX.

É nessa década que nasce o freestyle, também nos Estados Unidos. Suas primeiras manobras foram inventadas por pilotos como Bob Haro, considerado o pai do freestyle e autor das primeiras manobras, Ron Wilkerson e Michael Domingues. Nos anos 1990, surge um novo herói na cena, Matt Hoffman, que ajudou a reerguer o BMX Freestyle numa época em que a popularidade estava mais baixa. Hoffman organizou campeonatos, bateu vários recordes mundiais e foi, durante muitos anos, o campeão mundial na disciplina Vert.

O BMX chegou com toda a sua força no Brasil no final da década de 1970. Foi no Guarujá, no litoral paulista, em agosto de 1978, que a primeira pista da modalidade na América Latina foi construída. No ano seguinte, em 1979, outra pista foi montada na Marginal Pinheiros, em São Paulo, próximo à ponte da Avenida Cidade Jardim, com obstáculos, curvas e um poço de lama. Hoje, o local não guarda nenhuma lembrança desses tempos.

O nome mais forte do Brasil na modalidade é Orlando Camacho, chamado por muitos de o pai do BMX. Natural de Piracicaba, no interior paulista, ele começou a manobrar aos 18 anos, nas provas de estrada que aconteciam em São Paulo na década de 1950, época em que quem transitava pelo Vale do Anhangabaú parava para assistir às corridas de bicicleta.

TREINO EM FAMÍLIA

O gosto pelo bicicross passou de irmão para irmã. Primeiro, foi Douglas, um ano mais velho, quem quis se aventurar nas acrobacias sob duas rodas, ali mesmo, na pista da cidade. A irmã, que tem nele um espelho, foi atrás. Logo já estava manobrando e disputando campeonatos.

Priscilla e o irmão, Douglas (Foto: Carlos Ximenes/Clichetes)
PRISCILLA E O IRMÃO, DOUGLAS | CARLOS XIMENES
Priscilla, na pista de BMX em Sorocaba (SP) (Foto: Carlos Ximenes/Clichetes)
PRISCILLA NA PISTA DE BMX | CARLOS XIMENES
Priscilla com uma das maquetes feitas para a faculdade (Foto: Carlos Ximenes/Clichetes)
PRISCILLA | CARLOS XIMENES

Sem medo de saltar, ela atrai olhares atentos dos garotos que estão aprendendo a pilotar e ficam um pouco intimidados quando ela está na pista. A qualidade e a técnica só não conseguem conquistar uma espectadora em especial: a irmã caçula, Milena. Durante o treino da tarde, Milena chega acompanhada da mãe, Lenice Stevaux, e permanece o tempo todo de costas. A justificativa é simples: “Não gosto de olhar”. A mãe não estranha, afinal, o comportamento já é praxe. Nem quando as manobras de Priscilla arrancam um “uau” de quem assiste, Milena se rende à curiosidade.

Hoje, Lenice já consegue controlar o nervosismo de ver os filhos saltando pra lá e pra cá sob duas rodas. Segurou a onda mesmo quando viu Priscilla, pelo computador, se acidentar na Califórnia.

- Já nem preciso mais fazer eletrocardiograma, brinca ela, que sabe de cor todos os acidentes e quedas dos filhos — Quando o Douglas caiu e perfurou o pulmão, várias pessoas me disseram: ‘você vai deixar esse menino voltar a fazer isso’. O que é que eu vou fazer? Melhor incentivar do que ver ele frustrado no futuro.

Quando está sem patrocínio, é com a mãe que Priscilla conta para manter seus gastos como atleta de BMX. Não é um esporte barato. Uma viagem para o mundial da Holanda custaria o equivalente a R$ 5.000 para competir, se ela for como atleta individual. Fora isso, precisa-se de um uniforme adequado e capacete (R$ 1.500), caneleira (em média R$ 200), sapatilhas para correr (em média R$ 650), óculos para competir (em torno de R$ 250), além da manutenção mensal da bike (mais ou menos R$ 200 por mês) e da troca do quadro da magrela, que precisa ser feita uma vez ao ano. Mesmo com o orçamento apertado e sem treinador, deixar de competir não está nos planos.

Agora, é seu irmão, o maior ídolo de Priscilla, quem vai tomar as rédeas dos treinos da atleta. Formado em educação física, ele prepara novas planilhas e deve passar um pouco de sua experiência para consertar alguns vícios da irmã.

- Ela tem muita técnica, mas precisa melhorar a largada e a parte física, avalia ele.

Por ser uma atleta baixa, Priscilla aposta na técnica, segundo ela, sua maior qualidade, para se agigantar. Aprimorá-la pode ser seu grande trunfo nas próximas competições.

- As meninas costumam saltar o básico. Então se a rampa é difícil, o que elas vão fazer é pular reto. Os meninos não, eles se divertem fazendo, ousam, e isso é ter técnica. Saltar e não ter muito atrito, sabendo o que você tá fazendo de diversas maneiras e saber sair da situação de diferentes modos, conta ela.

Há alguns anos, o sonho dos irmãos era competir juntos em uma Olimpíada. Douglas sofreu quedas e lesões e agora, embora não pretenda abandonar a bike, quer apostar nas pedaladas e manobras da irmã.

- Eu tenho outros sonhos, mas ela chegou onde muitas vezes eu quis estar. Sou parte dessa conquista e me orgulho disso.

A maratona de treinos, academia, campeonatos regionais, estaduais, latinoamericanos e mundiais deve ser cada vez mais parte da rotina da atleta, já que ordem do dia agora é treinar forte para 2016 e crescer nas competições internacionais. Sabendo das incertezas da vida de atleta, ela já traçou uma meta.

- Eu pretendo continuar [no BMX] até disputar, pelo menos, uma Olimpíada. Pretendo continuar meu curso, mas antes disso não vou parar.

- Até participar de uma Olimpíada? — indagamos para ter certeza.

- Não. Até chegar ao pódio numa Olimpíada.

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