PEQUENAS HISTÓRIAS DA GASTRONOMIA PARAENSE

Açaí, tacacá, o afrodisíaco jambu, e mais. Sirva-se

Clichetes
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por Fabiana Nanô

D iz o senso comum que comida de brasileiro é arroz com feijão, pontualmente ao meio-dia, de preferência. Diz a lenda amazônica que a comida chora. Uma pequena esfera escura pende do alto de uma palmeira, 20 metros acima do solo, alimento para a raiz e o tronco fino e comprido, encravado em um pedaço de terra à beira do rio.

O rio, afluente de outro curso d’água, imiscui-se em uma intrincada rede que forma a maior bacia hidrográfica do planeta — trajetória que começa com uma gota de degelo em uma montanha perdida dos Andes e termina com o deságue, no oceano, de 20% da água doce do mundo.

A esfera escura também é uma gota num mar arroxeado que chega à noite ao porto de Belém, em enormes cestas carregadas por negros hercúleos, que não dormem. O ritual se repete desde tempos imemoriais. A capital do Pará é o eldorado por onde passa 87% da produção nacional da fruta que chora — o açaí.

Desta bolinha parecida com a jabuticaba, extrai-se o sumo que servirá de matéria-prima para a confecção do creme.

Foto Fabiana Nanô
BALDE COM BOLINHAS DE AÇAÍ

Creme fresquinho e acompanhado de peixe e farinha grossa de mandioca, como manda o costume. Para colher o açaí, os paraenses usam a peconha, uma espécie de cinto feito com as próprias folhas da palmeira e amarrado aos pés, para ajudar na subida da longa árvore. Uma vez em cima, é só arrancar o fruto e deixá-lo cair, escorregar, escorrer — o açaí chora, e de suas lágrimas sai o líquido que dá razão de sua existência.

Do choro da mandioca brava também desponta vida, e este é um ensinamento indígena que se perdeu no tempo. Quatro ou cinco dias, porém, são suficientes para fazer o tucupi, um molho ácido de cor amarelada extraído do tubérculo e parte integrante do cotidiano da culinária paraense.

Descasca-se e rala-se a mandioca, que é introduzida em um tipiti, um tipo de espremedor feito de palha trançada e usado para secar raízes. O líquido verte, em mais um ritual amazônico, e é colocado para descansar por alguns dias, processo que irá separar o amido — conhecido como goma — do molho. Neste ponto, um veneno está à espreita. O veneno do suco da mandioca brava. Ele só desaparece depois de horas fervendo no fogo, para dar origem ao tucupi.

Mas uma origem apenas não satisfaz. Reza a lenda indígena que Jacy (lua) e Iassytatassú (estrela d’alva) resolveram visitar Ibiapité (centro da terra), em uma certa madrugada. Deixaram então Ibacapuranga (céu bonito) e, após descansar sobre um Iupê Jaçanã (vitória-régia), começaram a baixar às profundezas. Quando se preparavam para descer o Ibibira (abismo), Caninana Tyba mordeu a face de Jacy, que, ao sentir a dor, derramou amargas lágrimas sobre uma plantação de mandioca.

Sua face ficou para sempre marcada, enquanto suas lágrimas penetraram no interior do tubérculo, misturando-se ao líquido interno. Foi então que nasceu a mandioca brava, da qual se extrai o tucupi. Com o passar do tempo, índias anciãs e sua sabedoria milenar descobriram que, ao expor o suco ao sol, destruía-se a força do veneno que correu dos olhos de Jacy e se impregnou na mandioca.

Tão intenso quanto o tucupi é o seu par inseparável, o jambu. Hortaliça conhecida como “agrião do Norte”, o jambu está presente em todas as mesas paraenses, mergulhado no molho feito da mandioca brava. Um completa o outro, pois, ao ser mastigada, esta folha verdinha, com aparência inocente, produz um efeito anestesiante instantâneo, que se alastra por toda a boca. Quem diminui o barato, sem cortá-lo por inteiro, é o tucupi.

Dizem as línguas maliciosas que o jambu é afrodisíaco. Outras línguas mais medicinais lembram seu poder de aliviar dores de dente e de garganta, sua força para combater febre e asma. Mas, para além de suas capacidades, a hortaliça é planta milenar, vista em inúmeros pratos típicos da região amazônica.

Foto Fabiana Nanô
O TÍPICO TACACÁ SERVIDO NA CUIA

Combinada com tucupi, goma de tapioca e camarão seco, transforma-se no tacacá. Esta iguaria é servida espumando em uma cuia, e diz a tradição que deve-se tomá-la sob sol a pino. Sobrepõe-se, assim, o quente no quente.

Carne de pato é outro antigo acompanhamento para a dupla jambu e tucupi. O animal é amplamente consumido no Pará, desde antes do período colonial. Nesta época, era comum ver pessoas disputando um jogo que consistia em abater um pato amarrado a um toco de pau. Aquele que conseguisse decepar a cabeça da ave a levava para casa como premiação. Os que fracassavam em suas tentativas “pagavam o pato” ao vencedor.

Vem daí a expressão que significa “sofrer as consequências de algo”. Não sofria, porém, o felizardo que carregava a ave para casa para fazer um dos mais tradicionais pratos nortistas brasileiros — o pato no tucupi.

Floresce da terra o alimento do homem. Os pratos têm história, os ingredientes são lendas vivas e toda uma rica cultura permanece nas zonas sombrias e indefinidas de um senso comum que diz que comida de brasileiro é arroz com feijão. Como resposta, a lenda amazônica, imponente, lembra que, há tempos, o alimento chora.

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