PROMESSA DE PAI

Uma história de família sobre um milagre e o valor de uma promessa.

Clichetes
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por Carolina Cunha

O vento sempre soprou forte nas terras da Fazenda da Gordura. Em outubro de 1947, a estação das chuvas não deu trégua naquele rincão de cerrado mineiro. E foi num dia chuvoso, no dia 16, que se escutou um choro. A jovem Santa, de 22 anos, deu à luz uma menina que recebeu o nome de Inácia, em homenagem à mãe do marido Amadeu Reis, 27 anos.

Quando o bebê nasceu, os irmãos Henriqueta, Zico e Genésio estavam com coqueluche. As tosses eram fortes, úmidas e frequentes. E com oito dias de vida, mesmo com as roupinhas quentes que a embalavam no cesto, a recém-nascida começou a fraquejar.

Não havia um médico por ali ou nas vilas próximas do Areado e Capelinha do Chumbo. Sem sinal de melhora, os pais temiam o pior. Por causa do sarampo, já haviam enterrado outro neném antes. Se esta morresse, o destino de sua alma poderia ser o limbo. Mas havia outro jeito. Se a pequena se tornasse cristã, quem sabe receberiam uma bênção?

Um padre foi chamado às pressas para batizar a criança. Na casa, os padrinhos colocaram o bebê nos braços e oraram. Depois, molharam os dedos e fizeram o sinal da cruz em sua testa, boca e peito dizendo:

-Inácia, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

No dia seguinte, a criança já estava melhor. Demorou cerca de 50 dias para ela ser considerada curada. Ninguém soube explicar. Para Dona Santa, a sobrevivência da filha foi um verdadeiro milagre.

Seu Reis conduz a filha durante jornada para pagar a promessa | Arquivo pessoal

NA FESTA DO ANDREQUICÉ

1948. Rota de tropeiros, o arraial de Andrequicé é um lugar escondido com algumas dezenas de casas e terra batida nas cercanias de Presidente Olegário (MG). Seu maior atrativo é uma igreja simples, dedicada a Nossa Senhora da Abadia. É ali que desde 1888, sempre no dia 15 de agosto, o marasmo se transforma em três dias de festa.

Romeiros de diferentes lugares chegam a pé, a cavalo e em carros de boi. Vão fazer pedidos e cumprir promessas, a maioria invocações para a cura de enfermidades. Montam acampamento com barracas de pano e usam a beira do rio para lavar roupas e apanhar água.

Os compromissos religiosos são muitos e barulhentos. A imagem da Santa, que veio de Portugal, segue em procissão. Novenas e batizados são realizados. Quando as carreatas ou os grupos de cavalgadas se aproximam da igreja, o padre caminha entre os animais, jogando água benta. A cada noite, em frente à igreja, acende-se uma grande fogueira, com até 30 metros de lenha. Para passar o tempo, homens tocam modas de viola caipira.

Na festa daquele ano de 1948, uma carreata de 14 parelhas de boi partiu da Fazenda Gordura e de outras fazendas vizinhas, com as rodas cantando rumo a Andrequicé. Um desses carros era ocupado por Amadeu Reis e sua família.

Antes do bebê nascer, ele tinha caído e quebrado o nariz. Sua mãe Inácia fez uma promessa. Se melhorasse, os dois iriam à Festa de Nossa Senhora da Abadia e acenderiam uma vela para a Santa. Não deu tempo. A matriarca morreu antes, em seus braços. O luto foi difícil e doloroso. Agora quem pagaria a promessa junto a Amadeu Reis seria sua irmã Alvarina.

Quase na entrada da vila, já perto do rio, Nen, o marido de Alvarina, escorrega num barranco. Seu corpo choca-se contra a pesada roda de boi, que ao girar, fere a pele do quadril ao pescoço. Machucado de sangue, Nen recusa qualquer ajuda. Cambaleia até o vilarejo e ao ver as primeiras casas, desaba no chão. Depois dos socorros e a certeza de que não havia perigo de morte, Alvarina dá uma bronca no rapaz.

-Não é porque ocê é duro e tem braveza não! É um milagre da Nossa Senhora Abadia. Poderia ter morrido!

NA FAZENDA DA GORDURA

Na infância, durante conversa de comadres, o menino Reis foi prometido à menina Santa em casamento. Para honrar o acordo das mães, casaram-se muito cedo e juntaram as terras das famílias.

O fazendeiro se tornou um adulto alto e vistoso. Mirava as pessoas com olhos muito azuis. De risada fácil, era alegre, mas muito sério, fazia negócios na base da palavra e o que falasse era lei. Tinha fama de gostar de novidades. Foi o primeiro da região a comprar um rádio e uma vitrola. Aos finais de semana, gostava de convidar os amigos para ouvir discos de duplas caipiras. Havendo visitas, a dança era obrigatória, inclusive para as crianças.

A rotina na Fazenda da Gordura começava cedo. Seu Reis madrugava como qualquer peão. Tirar leite de vaca, capinar, arar a lavoura eram tarefas diárias. A mãe ficava às voltas com a criação dos filhos e da organização das tarefas do lar, um amplo casarão de seis quartos. Debulhar milho, fazer farinha, curar os queijos. Nos finais de semana era de lei acender o forno a lenha e encher balaios com quitandas variadas, que serviriam como lanches durante toda a próxima semana. Passava horas na cozinha.

À noite, ao chegar da labuta, o fazendeiro pedia que lhe tirassem as botas e esperava o jantar. Depois, reunia a criançada na cozinha. No escuro, com a lamparina de querosene acesa, todos faziam uma roda. Seu Reis então contava histórias infantis e causos antigos que sabia de cabeça. Sinhazinhas que eram bruxas,príncipes que viravam sapos, cavaleiros de um reino distante, mulas que não tinham cabeças. Tinha uma estante com poucos livros. Fábulas de La Fontaine e mitos gregos eram os preferidos.

As crianças voavam na imaginação e até ficavam sem dormir com medo de assombrações. O medo de Dona Santa era relâmpago. Em noite fria e escura, quando trovões estremeciam a casa — ela é quem não dormia.

A MARGARIDA

- Já está aprendendo o ABC e a tabuada — orgulha-se Dona Santa. A mãe, que não sabia ler, quis que a pequena Inácia acompanhasse os irmãos na escola rural. Assim, aos cinco anos, ela acabou sendo aceita pela professora.

Inácia era a mais nova da turma e ganhou o apelido de “Barrosa”, pois era loirinha como uma alemã, com a pele rosada, olhos verdes, cabelos lisos, um furinho no queixo e sempre de tranças.

Por ser a menor, no recreio, era a escolhida para ser “A Margarida” das cantigas de roda. Na brincadeira, ela ficava no centro e as mãos de várias meninas cobriam sua cabeça. Fora do círculo, uma menina dá uma volta ao redor e cantando, pergunta:

-Onde está a Margarida, olê, olê, olá, onde está a margarida, olêêê, seus cavalheiros.

As crianças que cobriam a pequena respondiam — Ela está em seu castelo olê, olê, olá, ela está em seu castelo olêêê, seus cavalheiros.

A cantiga seguia, tirando uma a uma as crianças que representavam as pedras do castelo da Margarida. Até ficar apenas a menina que estava oculta no centro do grupo — a pequena Inácia.

Quando saía a última menina e Inácia aparecia sozinha, já se formara uma grande roda. Nesse momento a garotada ia ficando eufórica e cantava bem alto: “apareceu a Margarida, olê, olê, olá; apareceu a Margarida olêêê, seus cavalheiros”.

No final, todas as meninas da roda pegavam a menininha pela cintura, pernas e braços, e, levantando-a o mais alto possível e quase gritando diziam -Viva a Margariiiidaaaaaaa! -Viva a Margariiidaaaaaaa!

Ser levada às alturas era verdadeiro delírio para a Margarida. É nesta hora que ela fecha os olhos e sente muita felicidade.

UM ACIDENTE

Junho de 1954. Dona Santa prepara o almoço na cozinha. Na casa ao lado, perto do monjolo, dos tachos e de grandes panelas, Inácia brinca com duas irmãs. No chão, o trio desenha em folhas de papel.

Inácia quer apagar um rabisco, mas não consegue. A mais velha, de dez anos, resolve ajudar. No esforço de arrancar a borrachinha do lápis, a ponta escapa com força e como uma flecha venenosa, atinge o olho esquerdo de Inácia. As meninas gritam. Assustada, Inácia não sente muita dor, mas se incomoda com a sensação de água quente escorrendo pelo seu rosto.

A mãe entra em desespero. Percebe que a ponta do lápis está presa no olho. Quis puxá-la, mas Inácia não deixa. Dona Santa deita a filha e cobre seu rosto com um pano. Olha para o oratório e grita por ajuda aos Santos todos, e em especial, a Santa Luzia, a protetora dos olhos.

Ao voltar da lida, alarmado, Seu Reis analisa o ferimento e diz que é melhor esperar o dia seguinte para ver se o machucado é grave. Com o grafite no olho, a infecção fica cada vez pior. Decidem ir à cidade de Patos de Minas em busca de ajuda médica.

Na Casa de Saúde, a menina fica internada por oito dias. O ferimento cresce e o médico aconselha o pai a buscar um centro de saúde mais avançado. Nenzico, o sobrinho de Seu Reis, fica encarregado de arrumar dinheiro para a viagem.

Os três partem para Uberaba (MG), onde a medicina estava bem mais evoluída. Bastou uma análise rápida para que os médicos recusassem a internação. O quadro clínico era tão ruim que ela teria que ir com urgência para Campinas, procurar o renomado Instituto Penido Burnier.

Seu Reis, que nunca saira de Patos de Minas, entrou num ônibus e desceu a estrada para a cidade paulista. Nen voltou para a fazenda, com a missão de levantar mais dinheiro com a venda de animais, pois o tratamento seria mais longo do que o esperado.

Em Campinas, os médicos passaram algum tempo tentando salvar o olho da criança. Testam antibióticos, colocam agulhas na cavidade ocular, algumas mais dolorosas do que outras, sem anestesia. Mas a infecção não cede. Havia o risco eminente de que ela se espalhasse a níveis incontroláveis e atingisse também o olho direito da criança.

Os médicos então se reuniram com o pai. Queriam a autorização para um procedimento drástico: a extração do olho machucado. Seu Reis chama a filha para uma conversa.

- Você quer fazer isso?

- É preciso né pai. Estou triste. Mas eu vou!

Na sala de cirurgia, Inácia inalou um chumaço de algodão com éter. Ela pensou nos homens de jaleco branco. Estava ficando tonta. Teve uma visagem. Avistou um corredor em forma de cone, estreitas linhas de túnel. Escutou um zumbido constante em seu ouvido, como se fosse uma cigarra cantando baixinho. O túnel estava girando, como um relógio, no sentido anti-horário. Viu cores pretas, acinzentadas. Cor de grafite. Adormeceu.

Ninguém sabe quantos dias se passaram, mas a menina não acordava. O pai via a garota imóvel e cada pedacinho seu parecia morto. Na capela do hospital, Seu Reis segurou o choro. Como todo homem do Areado, nunca chorava. Afogou a dor na reza. Ajoelhou e fez uma promessa à sua Santa de devoção. Se a menina sobrevivesse, ele a levaria a Andrequicé. Ela montada em lombo de cavalo, e ele a pé, puxando o animal.

A preocupação não ia embora. Decidiu ter uma conversa de homem para homem com o chefe da equipe de médicos. Seu Reis, com barba por fazer, vestindo camisa de algodão surrada, calçado de botinas e chapéu na mão, parecia abatido como nunca. Sem floreios, passa o recado:

-Óia aqui, seu dotor, eu lhe pareço muito simples. Meus trajes tá du jeito que tá porque eu trabaio na roça, fazendo cerca. Tratando de companheiro. Mais eu tenho uma fazenda de modo que se eu vender, compro o prédio desse hospital inteiro. Se ocês num for gente pra sarvar a vida de minha fia, eu quero ela viva. O senhor me diga a verdade: se minha fia vai morrer, diga logo, pois eu aviso uma coisa: num saio daqui sem ela.. Morta ou viva, eu a levo de vorta! Não aceito que o corpinho dela fique aqui para estudos de medicina.

O Doutor, sem muita explicação, olhou para Seu Reis e procurou tranquilizá-lo:

-Olhe, Seu Amadeu, já houve mesmo o perigo de ela morrer. Mas o perigo maior já passou. Agora é esperar pela recuperação.

Quando Inácia acordou, demorou a perceber onde estava. Tentou se sentar na cama, com dificuldade. Colocou a mão no rosto e percebeu uma bandagem. Estava tonta. Ao tentar ficar em pé, as pernas bambearam e ela teve de segurar a colcha com as mãos, para não cair.

Os dias se passaram e a menina ainda estava em tratamento, esperando a cicatrização da ferida. Resistiu o melhor que pôde. Ela praticamente morava no hospital e logo ficou conhecida pela equipe. Era um pouco filha de todos. As enfermeiras a adoravam e tentavam agradá-la com presentes.

Inácia ganhou uma medalhinha dourada. Para a menina que nunca ganhou nada, aquilo foi mais valioso que ouro de verdade. Outra enfermeira a presenteou com uma boneca grande, feita de papelão. Inácia estava extasiada. Que presente! Até então, só conhecia bonequinhas de pano feitas pela irmã mais velha. Essa era diferente. Era grande, com olhos, nariz e boca bem definidos. E era sua.

Pai e filha foram morar na Pensão Vera Cruz. Pela primeira vez, a garota viu jardins com flores e arbustos bem cuidados. Ali, fez amizade com três meninas de uma família que morava na vizinhança. Com elas, aprendeu a falar um português mais urbano e algumas brincadeiras “da cidade”, como o jogo da amarelinha.

O pai a levava para passeios. Ela enfaixada, nunca se importou com a aparência. Tinha poucas peças de roupa, um vestido e um casaquinho de flanela. Mal via espelhos. Queria mesmo era ver o burburinho.

Andavam de bonde elétrico, cruzavam por casas diferentes, fábricas, o mercado de frutas e o comércio. Nunca tinham dinheiro para comprar nada, mas Inácia estava tão feliz que chegou a agradecer por estar ali. Descobriu que o mundo era bem maior do que o silêncio da fazenda.

-Ela tem que receber Jesus, disse uma freira a Seu Reis. A senhora queria preparar a menina para a primeira comunhão, que poderia ser feita lá mesmo: na capela do Instituto. O pai consentiu.

As aulas com a freira aconteciam à tarde, no pátio do hospital. A menina respondia a todas as perguntas. Aprendeu a rezar e a decorar os pecados conforme a Bíblia ensina. Entendeu que deveria ser muito boa e esforçada em casa, com os pais, os irmãos, com os pobres, com “todo mundo”.

O dia da Primeira Comunhão aconteceu antes da alta médica. Todos a aguardavam no pátio, o pai, as freiras, enfermeiras e médicos. Ao entrar na capela, Inácia vestia uma túnica branca, sandália de couro, véu e grinalda. Disseram para ela que parecia um anjo.

Um frei entregou sua primeira hóstia e celebrou a missa. Depois, partiu um bolo branco, o primeiro confeitado de sua vida. Logo Inácia voltaria para Minas Gerais, com uma prótese ocular “de vidro” e uma felicidade inabalável.

Naquele dia, Dona Santa jamais imaginou que o marido e a filha estavam a caminho. Não recebeu carta. Era como se tivessem sumido no mundo. Ela se entristeceu, não sabia se a menina voltaria viva, mas a vida seguia e tinha os filhos e um novo bebê para criar. Genésio chegou a pensar que o pai nunca mais voltaria e que teria que assumir as lidas da fazenda.

Seu Reis e Inácia voltaram de ônibus para Minas Gerais. Ao descerem no ponto do vilarejo, era tarde da noite e a lua estava claríssima. Durante o caminho de quatro quilômetros até a fazenda, segurando a mão da filha, Seu Reis a preparava para encontrar mais um bebê. Um passo de cada vez e à meia-noite, quando todos estavam dormindo, eles cruzaram a porteira do curral.

-Ô Santa! Ô Santa! — chamou o pai.

A esposa levou um susto. Os dois pareciam cansados e as roupas estavam sujas da estrada empoeirada. A criança segurava uma boneca na mão e sorria. Correu para abraçá-los.

- E a Inácia, como é que tá? — pergunta Dona Santa, escondendo os olhos marejados.

- Tá melhorzinha, não tá do jeito que a gente queria não.

A mãe olhou curiosa para a prótese — Que bonito! — disse, sem querer demonstrar a preocupação que sentiu naquele momento. Temeu pelo futuro da filha. Será que ela iria conseguir estudar, trabalhar, arrumar um marido?

Pensou no bebê e foi apresentar a irmãzinha para Inácia.

- O nome da sua irmã é Maria Luzia. Quem o escolheu foi sua madrinha Isabel, que fez promessa para Santa Luzia curar seu olho.

Inácia seria o centro das atenções nos próximos dias. Todos queriam vê-la e recebia visitas de longe. Um cego usando prótese era uma das coisas mais modernas e inimagináveis por aquelas bandas. Ela sentia que estava dando um show. Aproveitou a plateia e resolveu mostrar o quanto estava sabida. “Você sabe que..”, “Você veja bem…”. E nesse português “bem dizido”, todo mundo estranhou a falta do “ocê”.

A mãe e os irmãos queriam saber tudo sobre a viagem comprida. A menina falava das novidades. Um dia, ela fala para a mãe:

-Descobri que quero ser médica!

Na sua casa,com a nova família, o pai continuava o mesmo. Estátua de São Jorge na porta; na parede, retratos antigos dos pais, o chapéu de vaqueiro, a imagem de Nossa Senhora Aparecida e o brasão de times de futebol. Ainda era torcedor do Cruzeiro e do Mamoré, time da cidade | Arquivo Pessoal

A rotina na fazenda voltava a se instalar. Naquele ano de 1954 não foi possível ir a Andrequicé pagar a promessa. Havia um bebê novo, dívidas a pagar e lavouras a plantar, já que as chuvas chegariam pelo início de outubro. Também era comum fazer uma promessa a um santo de devoção e deixar para cumpri-la muitos anos depois.

Com o tempo, Inácia se acostumou com o olho. Algumas vezes, voltava chorosa da escola. Não olhava para as pessoas e baixava a cabeça. Dona Santa sofria calada. “Raiva de pai que não ensina nada e deixa o filho ficar bobo”, diz ela.

A menina cresceu, assim como os nove irmãos que veio a ter. Os pais se mudaram para a cidade de Patos de Minas. Inácia estudou e fez o curso para professora.

Nesta época, Brasília estava sendo construída e em 1960, foi inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek. Muitos mineiros e goianos estavam se mudando para a nova capital — havia o boato de emprego sobrando.

Em 11 de janeiro de 1966, como muitos outros jovens, Inácia fez as malas e foi para a capital federal, acreditando que seu futuro estava por lá. Era a primeira a sair de casa.

Assim que chegou, foi morar num pensionato de uma tia e conseguiu um emprego como professora primária. Em 1967, entrou na turma da faculdade de Biblioteconomia da Universidade de Brasília. Seria a primeira pessoa da família a ter um diploma de curso superior.

O tempo passou, Inácia se apaixonou e aceitou a proposta de casamento de Murilo, um colega de classe. Estudou para concursos e se tornou funcionária pública. O casamento aconteceu em 1973.

Enquanto os filhos arrumavam a vida, Seu Reis e Dona Santa atravessavam uma longa crise conjugal. A esposa morava na cidade e ele na fazenda. O fazendeiro começou um relacionamento com outra mulher. As duas começaram a brigar. Depois de uma ameaça, que Dona Santa levou a sério, ela decidiu se afastar e mudou-se para Brasília com os demais filhos. Jurou não colocar os pés em Patos de Minas de novo. Também temia que o pouco patrimônio da família pudesse ser desfeito.

Em julho de 1979, Inácia voltou a Patos de Minas, desta vez, com uma missão dolorosa. Deveria entregar ao pai o documento de desquite que o advogado da mãe preparou. A conversa foi silenciosa. Abalado, o pai nunca achou que passaria por um divórcio. Sua vontade era manter as duas famílias ao mesmo tempo.

Com o divórcio, os filhos só conseguiriam ver o pai de vez em quando. Tiveram que trabalhar para ter comida em casa. Acharam que o pai os abandonara. Muitos cresceram não entendendo a sua escolha. Coisas do amor. Dona Santa nunca tirou a aliança do dedo. Sempre achou que “o que Deus une, ninguém separa”.

Em meados de agosto, do mesmo ano, Inácia entrou num avião para os Estados Unidos, onde acompanharia o marido num programa de doutorado. Já tinha Bruno, seu primeiro filho e até voltar ao Brasil, em 1981, teria completado a família com duas meninas, Anna Lúcia e Carolina.

Em 1983 Inácia tirou férias. De carro, foi a Patos de Minas. Fazia um bom tempo que não se viam. Agora o pai morava na cidade e tinha um novo casamento e uma segunda filha desse relacionamento.

A maior surpresa foi saber que a menina, de dois anos, tinha o mesmo nome que ela: Inácia. E para não confundir, a mais nova ganhou o apelido de Inacinha. Como explicação para tal “fenômeno”, Seu Reis contou que temia que a Inácia adulta se afastasse dele, por causa do divórcio. Para piorar, sabia que não que conseguiria viver sem ter uma pessoa com o nome de sua mãe por perto.

Na sua casa,com a nova família, o pai continuava o mesmo. Estátua de São Jorge na porta; na parede, retratos antigos dos pais, o chapéu de vaqueiro, a imagem de Nossa Senhora Aparecida e o brasão de times de futebol. Ainda era torcedor do Cruzeiro e do Mamoré, time da cidade.

Neste encontro, o pai tocou no assunto do pagamento da promessa feita no hospital de Campinas. Ele nunca se esqueceu dela. Sempre foi um homem de valorizar a própria palavra.

A SEGUNDA VIAGEM A ANDREQUICÉ

A estrada de terra que leva para Andrequicé atualmente | Arquivo pessoal

-Minha filha, esse ano nós vamos pagar a promessa.

Em 1991, Seu Reis acabara de completar 72 anos e decidiu que o momento havia chegado. Desde janeiro começou a fazer caminhadas na cidade de Patos de Minas, cruzando-a de uma ponta a outra. Chegava a se exercitar por até quatro horas.

Em Brasília, a possibilidade de fazer a viagem naquele ano fazia Inácia ter noites de insônia. Aos 44 anos, o momento não era dos melhores. Haveria de ter outro jeito. No trabalho, pediu conselhos à chefe.

- Como fazer para que uma promessa seja perdoada pela Igreja?

- Bem, o arcebispo pode dar um perdão, atribuir uma nova penitência no lugar do pagamento da promessa — respondeu a chefe.

Inácia procurou Dom Ávila, o então Arcebispo de Brasília. Marcaram um encontro na Catedral de Brasília. Ao escutar a história, ele contou que era muito comum o povo antigo fazer promessas difíceis e aconselhou que seu pai o procurasse para uma conversa. “É possível escolher uma nova penitência”, disse.

Animada com o perdão, Inácia ligou para o pai. Ao contar da conversa com o Arcebispo, Seu Reis ficou bravo e ofendido.

- Olha minha filha, você agora já é maior de idade e já está casada, com emprego e filhos. Você vai se quiser. Mas eu vou pagar minha promessa. Não quero perdão nenhum. Eu vou cumpri-la do jeitinho que prometi. Se você não puder ir, boto a outra Inácia em cima do cavalo e vou.

Inácia sabia que o pai era turrão. O que ele falou, tava falado. Não tinha volta. Depois de refletir, ainda relutante, ela decidiu que tinha que se preparar.

Dois meses antes da Festa de Andrequicé, Seu Reis começou a visitar fazendas para comprar um cavalo. Nenhum lhe agradava. Para a pequena Inácia, que o acompanhava, ele disse “tenho que olhar para ele e pensar: é esse”.

Ninguém sabia qual era o critério da escolha. Na época da fazenda, Seu Reis queria pagar a promessa com o Gazinho, um cavalo branco que Dona Santa montava em seus passeios e pequenas viagens. Diziam que ele era um cavalo de cilhão, muito manso e bom de toada. Um dia, Gazinho passou por um lugar mal-assombrado na hora errada, no final da tarde. Seguiu à risca a ordem de trotar com velocidade.

-Parecia que não tava no chão não, parecia que voava, cada passada era dois metros, lembra a avó, D. Santa.

Mas o cavalo comprado, agora, para pagar a promessa, não era branco. Haveria ainda outra mudança em seus planos. Seu Reis aceitou sair da cidade de Patos de Minas e não da antiga Fazenda da Gordura.

No dia 10 de agosto, Inácia e Murilo chegaram a Patos de Minas. Acertaram o horário de saída e todos os detalhes da viagem. Seu Reis estava eufórico. Enquanto isso, Inácia se preocupava com o cansaço que ele poderia enfrentar.

O cavalo ficou esperando numa manguinha, pasto dentro da cidade. Dona Rita, agora esposa de Seu Reis, fez a matula e amarrou as panelas com pano de saco. Havia torresmo, frango e macarrão. Zé Humberto, filho do primeiro casamento de Rita, arrumou um carro de apoio para levar os mantimentos, junto com Murilo. Inacinha juntou-se ao grupo, porque “se alguma coisa acontecer, a Inacinha monta no cavalo no lugar da Inácia”.

No dia 12 de agosto estava marcada a saída para Andrequicé. Às três horas da manhã, pai e filha tomaram um café. Era uma fria madrugada e sabiam que deveriam caminhar o máximo que pudessem para aproveitar a fresca da manhã, porque a tarde seria muito quente com certeza.

O pai colocou um casaco. Nos pés, tênis e meia. Sob o chapéu, um lenço vermelho protegia a cabeça e o pescoço. A filha vestiu uma calça comprida, casaco e lenço na cabeça.

Inácia subiu no cavalo que estava com arreio, coberto com proteção de espuma para ficar confortável. Seu Reis puxou o cabresto do cavalo e começou a caminhada. Depois do primeiro passo, ele deu uma parada e falou:

- Pronto, minha filha. O primeiro passo a gente já deu. Esse é o primeiro de uma grande jornada.

Ao segundo passo, cada um orou em silêncio. Inácia pediu a Deus forças para seguir. O caminho até Presidente Olegário era praticamente uma subida. De carro, o percurso pode ser feito em até meia hora. A pé, demora até quatro horas. Quase na saída para a BR, num ponto alto, ao lado de uma fábrica de doce de leite, Inácia olhou para a cidade. As luzes estavam muito bonitas.

-O que é isso que estão fazendo?- pergunta um homem, com autoridade. A voz grave vinha de uma viatura policial que fazia a ronda no lugar. Ao avistar uma senhora num cavalo e um idoso caminhando, acharam tudo muito esquisito.

Seu Reis explicou que fizera uma promessa muito tempo atrás e que só agora ele ia pagar. Encheu-se de orgulho. “Estou com 72 anos. Acho que é uma boa hora né?”.

Andaram na rodovia madrugada adentro. Tum-Tum. Tum-Tum. O silêncio era quebrado pelo som do casco do cavalo no asfalto. Inácia evitava conversar. De vez em quando faziam uma parada. Não tinham sono. Olhou para o pai, preocupada. Mas ele parecia não sentir o cansaço. Foram de cabeça para cima.

Na entrada para Presidente Olegário, desviaram para uma estrada de terra e subiram um morro íngreme. Às nove horas da manhã, Murilo e Zé Humberto apareceram de carro para servir água e café. Era o sinal para parar.

Quando Inácia desceu do cavalo, suas pernas estavam duras. No contato com o chão, elas ficaram um pouco arqueadas e mal conseguiam se fechar. O pai sentou pela primeira vez nas últimas horas. Murilo passou toalhas molhadas no rosto do sogro e da mulher.

-Tudo bem minha filha, dá conta de subir? — perguntou Seu Reis, depois de um gole de café.

Seu Reis olhou para o cavalo e calculou os metros, para ter certeza de que andaria tudo que prometeu e que nenhum palmo ficasse de fora. Inácia mudou as pernas de posição, para ficarem juntas, apenas de um lado da sela. Os carros ficaram parados e iriam esperar o horário para um novo encontro.

Olhavam para a paisagem ao redor. Quanto mais longe, mais rarefeita a vegetação se tornava. Enveredaram por estrada de terra avermelhada. O capim estava seco. No horizonte, chapadões e poucos buritis. Nas próximas duas horas o sol seria o pior inimigo.

O calor escaldante do cerrado piorava com a falta de árvores. Inácia vestia roupas de manga comprida, mas mesmo com o suor do corpo, não podia tirá-las. Seu Reis protegia a pele com um antigo terno azul marinho e chapéu de palha.

Na hora do almoço, quando o carro de apoio chegou, foi difícil avistar numa sombra. Encontraram um pequeno córrego e pararam em sua margem. Zé Humberto encheu um balde d´agua para o cavalo beber.

Os dois viajantes deitaram em colchonetes. Seu Reis levantou as pernas, abriu os braços e deu uma gargalhada. Naquele momento, só precisava daquela sombra.

Depois de uma hora, colocou a sela no cavalo. Calculou o ponto exato que tinham parado. Recuou cinco passos para não ter perigo de andar menos do que o previsto. Inácia então subiu no animal.

A estrada era deserta e o tempo passava devagar. No caminho, avistaram um carro de boi, que transportava uma família de romeiros. O pai caminhava lentamente levando as crianças, como se fosse uma carroça.

Às cinco horas da tarde, chegaram num rancho. Tocaram na casa e pediram pelo dono do pasto. Seu Reis negociou um favor. Queria deixar o cavalo para pernoitar. O fazendeiro, já acostumado com os romeiros, permitiu que o cavalo por ali pernoitasse.

A sela foi colocada no carro de apoio. Seu Reis e sua equipe voltaram para dormir em casa. No dia seguinte haveria o segundo turno da viagem até Andrequicé.

Chegaram na cidade oito horas da noite. O pai tirou o sapato.

- O Murilo tá ali, fazendo massagem nos pés do papai — responde Inácia, quando a irmã Lázara ligou preocupada de Brasília.

Murilo colocou os pés do sogro numa bacia de água quente. Com um óleo, massageou os pés inchados e avermelhados de Seu Reis.

Ao ser chamado ao telefone pela filha, Seu Reis disse:

-Tô cansado, tô um trapo. Amanhã é outro dia, mas se Deus quiser, a gente vai continuar.

Seu Reis descansa numa sombra para recarragar as energias. Cansado, mas feliz | Arquivo pessoal

Depois do jantar, foram dormir e às três da manhã, já estavam de pé. Zé Humberto, Inacinha, Murilo, Seu Reis e Inácia entraram no carro e pegaram a mesma estrada até o local onde se encontrava o cavalo.

No escuro, não foi tão fácil achar o animal. De novo, Seu Reis havia marcado direitinho o lugar que pararam, ao lado de uma árvore. Afastou o cavalo cinco passos, mais uma vez.

Começou a caminhada do segundo dia. Eles penetravam cada vez mais no cerrado. Era silêncio de deserto, de vento quando uiva distante e de canto de pássaro quebrando a monotonia. Não havia árvore à vista e por isso a matula foi saboreada no meio da estrada, usando os carros como sombra.

- Parece que a gente tá perdido no mundo — disse Inácia, olhando para o sertão.

Sem água e sem comida, era muito provável que um viajante desmaiasse de insolação. Por cima do cavalo, Inácia observou atentamente o pai. Ao ver as pernas dele tremendo, ela disse apreensiva:

-Papai, vamos sentar. Vamos sentar de qualquer jeito!

Seu Reis cambaleou tonto e se apoiou num barranco. Já podia sentir as bolhas incomodando os pés. Esperaram pela chegada de Murilo. Tomaram água e tiraram os sapatos. O velho fazendeiro que até este momento não reclamara de nada, disse pela primeira vez que estava cansado. Fizeram um silêncio e pensaram no que fazer. Voltariam no dia seguinte? Esperariam um outro momento? Todos olharam para aquele senhor. Rapidamente, Seu Reis falou:

- Vamo minha filha, vamo que o tempo tá passando!

Era o último trecho da viagem. As árvores começaram a aparecer. Passaram por vários mata-burros, algumas porteiras e por um riachinho. Passou um tucano, um casal de araras e um bando de periquitos. Havia água e árvores por perto.

Depois de uma subida, avistaram o rio e a entrada de Andrequicé. Estava tudo diferente de antigamente.

- Que dó. Quase que num tem rio! Antigamente isso aqui era um riãooo!! — diz Seu Reis.

Continuaram a subir. Seu Reis apressou o passo e sentiu o coração bater mais forte. A duzentos metros da cidade, Murilo já estava ao lado, com o carro. Olhou no painel e calculou: 93 quilômetros rodados.

- Pega o atalho Seu Reis! — Sugere Murilo, ao ver que existiam dois jeitos de chegar ao santuário. Que fosse o mais rápido, pensou.

- De jeito nenhum! A entrada oficial da Igreja é lá. Eu vou dar essa volta, eu vou caminhar tudo que eu tenho que caminhar — responde.

Rodearam a praça ao redor da Igreja. Ao chegar na porta, Seu Reis falou:

-Agora a gente chegou. Pode descer minha filha.

Inácia já estava com os olhos vermelhos. Começou a chorar mais forte, quase soluçando.

Ajoelharam-se no mesmo banco. Inácia agradeceu por vencer o acidente, mas agradeceu de verdade, pela proteção durante a viagem. Depois, se ajoelharam aos pés de Nossa Senhora da Abadia. E 27 anos depois, a promessa estava cumprida.

Era o dia 13 de agosto e a festa ainda iria começar, no dia 15. Seu Reis então procurou o padre e ofereceu o cavalo como doação para um leilão da Igreja.

Depois, os cinco entraram no carro. No caminho de volta, aliviados, alguém falou:

- Inacinha não teve nem chance de subir.

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